25 de abril de 2018

Dois em um (25 de Abril / Um Lugar Silencioso).


   Há muito que não faço um dois em um, e há muito que não fujo das críticas cinematográficas e dos dias culturais. Hoje, continuarei com uma crítica cinematográfica, lá mais à frente, mas vinha-vos falar um pouco do 25 de Abril, cujo 44º aniversário assinalamos.

   Ensinam-nos, na escola e em casa, frequentemente em casa, que o 25 de Abril foi um dia de assaz relevância para Portugal, e nós acreditamos. Já escrevi tanto sobre o 25 de Abril aqui no blogue. Centrando-me mais na história, outras vezes no futuro. Nem me dei ao trabalho de ler o que escrevi em anos anteriores. Está aí. Consulte quem quiser.

   Afortunadamente, no processo de crescimento, começamos a fazer o nosso próprio escrutínio dos factos. Aprendemos a pensar, a analisar a realidade cruamente, influenciados, como não poderia deixar de ser, por crenças e ideologias. Cada um terá as suas. Pergunta-se: o 25 de Abril de 1974 terá sido um dia decisivo para Portugal? Foi-o. Tudo mudou. Não a partir de dia 26, mas sobretudo após os dois anos seguintes de profunda instabilidade e bancarrota - quase guerra civil. Terá sido um dia bom? Aí é que a porca torce o rabo, como diz o povo. Passámos de um quase unânime sim para um talvez. O tempo tem destas. Ajuda-nos a ter uma visão mais imparcial. Eu não vivi o regime anterior. Estou a par, entretanto, do que ocorria. Sei da repressão, sei da censura, sei da violação dos direitos de personalidade. Sei da guerra. Sei de tudo.

   O 25 de Abril teve um lado infinitamente bom. Olhamos para o Portugal de Salazar e Caetano e sabemos o que havia. Escusar-me-ei a enumerar. Avançámos na maioria dos indicadores. Mas parámos. Estagnámos. Torna-se pertinente fazer outra pergunta: se houvéssemos feito uma transição mais gradual, sem a descolonização forçada - que se impunha naquele contexto, é certo - não estaríamos ainda melhor? Falemos nos erros do 25 de Abril, das centenas de pessoas que se viram despojadas dos seus pertences, das independências a todo o custo, que quase nos arrebataram até os Açores e a Madeira. Uma obstinação doentia por nos livrarmos de territórios como se fossem fardos, como se pudéssemos simplesmente eliminar quinhentos anos de um passado que teve capítulos e façanhas de que nos orgulhamos e outros de que nos envergonhamos. Não foi apenas a guerra colonial a deixar-nos traumas; o 25 de Abril também os deixou.

   Salazar falhou nas previsões - logo ele, exímio estratega! - Caetano pouco pôde fazer. Já sabemos. Ninguém de bom senso quereria um Portugal sem futuro, no ostracismo, sem a liberdade de agir para mudar. Todavia, não podemos esquecer a nossa vocação universal. Não soubemos cuidar da nossa história. Não soubemos cultivar o apreço e o respeito com os países que se formaram dos territórios que ocupámos. Não tivemos - e aqui quanto a São Tomé e Príncipe e a Cabo Verde - a sensibilidade de encarar aqueles arquipélagos como o fazíamos com as nossas ilhas adjacentes, integrando-os no novo regime com um estatuto igual ao que têm actualmente as regiões autónomas. Não! Quisemos quebrar, romper, desembaraçar-nos das ilhas, dos portugueses que nelas habitavam, entregando-os à sua sorte. Nas províncias continentais africanas, as independências não foram sujeitas a referendo. O 25 de Abril de 1974 não trouxe, àqueles povos, o fim da guerra e da pobreza; trouxe-lhes mais guerra, mais pobreza, instabilidade, caos social e político, destruição total de infraestruturas. Ainda não recuperaram, inclusive do abandono a que foram sujeitos - sem paternalismos; com realismo. O genocídio timorense, indo aos confins do mundo (sem ânimo de ser pejorativo!), está fresco. Abril fomentou-o. Desresponsabilizámo-nos dos timorenses.

   Em território continental europeu, tanto que está por fazer. Liberdades cívicas, todas. Liberdade que se consubstancia em mais tempo de descanso em família, em mais respeito pela dignidade do trabalho, da saúde, muito pouca. O país continua a ficar aquém dos seus parceiros europeus. Os portugueses trabalham mais, têm uma produtividade menor, auferem bem menos. O serviço nacional de saúde tem insuficiências, a educação idem. Estamos a poucos anos do quinquagésimo aniversário do 25 de Abril. O país mudou mais na aparência do que no âmago. O atraso estrutural mantém-se. A desigualdade também. A pobreza espreita, e continuará a espreitar. E nem irei à corrupção e ao descrédito total da classe política, numa permissiva, e até estimulada, cultura de desonestidade e de falta de transparência.


   Falemos no 25 de Abril com clareza, sem receios. Com cedências e reservas. Não foi um dia mágico. Não foi só feito de cravos e de canções de intervenção. Deu-nos e tirou-nos outro tanto. Escreveu páginas e deixou-nos na inquietude das que ficaram por escrever e das que podiam ter sido escritas.
   Despolitize-se o dia. Olhe-se para ele com um sentido crítico apurado, interessado na procura da verdade, daquela que agrada e da que pode doer. Tão-só.


    Para terminar, quero falar-vos um pouco do filme que vi. Um Lugar Silencioso, com as antestreias marcadas para o dia 24 e para o dia 1. Filme de terror. Adoro terror. Assusta, sim, mais pelos silêncios, abruptamente interrompidos por umas estranhas criaturas vindas sabe-se lá de onde. O argumento é curioso. Eu coloco expectativas muito baixas nos filmes de terror, e raramente as suplantam. Ou sou muito exigente, ou muito difícil de convencer. O filme surpreendeu-me - uma vez mais, não havia lido qualquer sinopse - pelo argumento. Inusitado. Apocalíptico. Não me chegou a amedrontar, mas o suspense gerado consegue deixar-nos apavorados, como se também nós não pudéssemos fazer o menor ruído. Sentimo-nos, pelo menos eu senti-me assim, na iminência de ser detectados por algumas daquelas criaturas horrendas de acuidade auditiva extraordinária. Cercados. Sem hipóteses de escapar. É extremamente claustrofóbico. Ali não há qualquer alternativa. Melhor, há uma: lutar. E é precisamente assim que termina.

7 comentários:

  1. Depois disto nada mais a acrescentar: "Falemos no 25 de Abril com clareza, sem receios. Com cedências e reservas. Não foi um dia mágico. Não foi só feito de cravos e de canções de intervenção. Deu-nos e tirou-nos outro tanto. Escreveu páginas e deixou-nos na inquietude das que ficaram por escrever e das que podiam ter sido escritas.
    Despolitize-se o dia. Olhe-se para ele com um sentido crítico apurado, interessado na procura da verdade, daquela que agrada e da que pode doer. Tão-só."

    Por aqui vivemos algo semelhante ...

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    1. Espero que a vossa instabilidade dê, rapidamente, lugar ao sol.

      um abraço, meu amigo.

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  2. Vou dividir em dois este comentário, a aplicação não gosta de gente verborreica ;)

    Dada a minha idade, eu vivi esse dia.
    Estudava no Técnico, na altura e, dada a minha situação precária, na iminência de ingressar nas Forças Armadas, foi algo que me trouxe algo de diferente, e creio que bom. Eu já tinha a mente toda nas antigas colónias portuguesas, por ter nascido em Moçambique. Só faltava que o corpo também para lá regressasse, visto que tinha dali vindo pouco tempo antes.
    Quantos colegas e até amigos meus vi desaparecer de um dia para o outro. Alguns nunca mais vi ou mesmo soube deles!
    A vida dentro do Técnico, nos meses anteriores ao 25 de abril fazia-se lado a lado com carrinhas cheias de polícia de choque e cães (não me parece que servissem para nos proteger, a nós, os alunos!), e metralhadores colocadas nos topos dos edifícios, que, julgo igualmente, não serviriam para os ornamentar!

    No Portugal europeu vivia-se muiiiito mal, e eu reparei nisso. Sobretudo no interior de Portugal onde uma camada apreciável da população procurava sobreviver, e uma pesada percentagem tinha-se limitado a emigrar durante praticamente todo o século XX, e muito especialmente após os finais dos cinquentas, início dos sessenta.
    Nas cidades as desigualdades eram afrontosas e abismais.
    Uma camada apreciável da população era analfabeta.
    Não que as desigualdades não se continuem a verificar hoje, no entanto, vive-se incomparavelmente melhor, em termos gerais - deste Portugal e da sua transição, Maria Filomena Mónica traça os cenários mais reais, desassombrados e acertados que, desde sempre, me foram dados ler.

    Que a situação da descolonização foi péssima, catastrófica mesmo, para uma parte significativa da geração de então, foi-o, e muito especialmente para a minha família, e refiro-o pois tocou-me de perto.
    O meu pai não lhe sobreviveu e a minha mãe, conseguiu-o a grandes penas, mas, afinal, todas as convulsões políticas e sociais têm preço pesado para uns, menos para outros, como é normal que aconteça. É uma roleta!
    Mas vejo a sociedade portuguesa com melhores condições económicas e sociais, sobretudo nas camadas média e baixa da população de então.
    Deu lugar aos arrivistas e a novos ricos, que, anteriormente, e sem um nome por detrás, dificilmente teriam lugar no panorama nacional.
    Foi o fim de muitas famílias - uma tia minha (a qual me encantou pela sua extensa cultura, por ser uma melómana, uma comunicadora nata e por todo um mundo que teve a generosidade de comigo partilhar), enquanto viveu, chamava ao 25 de Abril de "a maldita data", o que não poderia, nunca, levar-lhe a mal, quanto mais não fosse pelo muito que veio a sofrer posteriormente, sem que disso tivesse qualquer culpa - afinal Luís XVI pagou caro pelos erros dos antecessores, pois ele até era o menor dos males.

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  3. Que, no presente, as coisas estejam boas, creio que não; afinal continuam a verificar-se desigualdades entre as várias camadas da população e entre a Europa portuguesa e a outra Europa, com severas consequências para este nosso canto. Continuamos a ser olhados como os parentes pobres da Europa, por maior que tenha sido o nosso passado.

    Que o acesso à comunicação que hoje temos é muito superior ao que tínhamos, é verdade, temo-lo.
    Que hoje nos podemos deslocar duma forma mais ou menos livre por todo o mundo, podemos, quando antes nos colocavam entraves a esta liberdade de movimentos; que o diga a camada da população que procurava melhores formas de vida e que, para isso, eram obrigados a emigrar, e, por isso mesmo, eram levados a passar as fronteiras "a salto", como era na altura denominado esse processo, com consequências desastrosas para quem falhava este processo.
    Ou a "deserção" das camadas intelectuais ou políticas de cor contrária, para poderem escapar a censuras e prisões (estas estavam cheias de gente que só tinha cometido "o erro" de dizer ou escrever o que pensavam) ou ainda os que não estavam de acordo com a guerra colonial e eram obrigados a alistar-se.

    Que atualmente preferiria ver todo o sistema a levar uma nova reviravolta, julgo que sim; creio mesmo que será inevitável num futuro que, gostaria de esperar, não estivesse muito longe, mas é algo que não adivinho, pois quase sempre fomos de relativos "brandos costumes".
    Definitivamente, apesar de ser proveniente de uma família relativamente modesta, mais de acordo com o "ancien régime", prefiro decididamente viver no Portugal de hoje. É muito mais saudável, em comparação, apesar de ter as suas maleitas.
    Peço-lhe mais uma vez desculpa por todo este arrazoado, mas quando começo a escrever deixo-me levar pelo som das palavras.
    Há gente que gosta de ouvir-se, ao invés, eu ... gosto de ler-me ... nada a fazer.
    Uma boa semana e um bom feriado
    Manel

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    1. Olá, Manel. Obrigado pelo seu testemunho.

      O meu pai também nasceu em Moçambique.

      Hoje mesmo se falou do quadro de discriminação que havia no Estado Novo. As mulheres não podiam sair do país sem autorização dos maridos. Não podiam, inclusive, ser magistradas. Um absurdo. É evidente que melhorámos em todos os indicadores. Eu menciono-o. O problema é que nos esquecemos do que foi mal feito, muito mal feito.

      Já lhe disse que pode, e deve, escrever o que lhe apetecer. :)

      Uma boa semana.

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  4. obrigado pela dica

    bom feriado :)

    abraço amigo

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