31 de dezembro de 2016

O ano em revista.


    A horas de encerrar dois mil e dezasseis - um ano amargo, quer a nível pessoal, quer em termos gerais - pego na ideia do ano passado, de compilar os principais temas abordados, com as respectivas hiperligações, substituindo os tradicionais discursos de fim de ano. Tivemos doze meses não tão atribulados politicamente, mas que, ainda assim, permitiram algumas reflexões.

    Quis iniciar o ano com uma sucinta menção à adesão de Portugal às comunidades europeias, que perfez três décadas logo a dia 1. Há ainda muito por fazer, de modo a que possamos dizer que nos aproximamos dos parâmetros sociais europeus. A poucos dias do meio do mês, os debates presidenciais mereceram a minha atenção. Estávamos a quinze dias do acto eleitoral. As fatídicas perdas começavam. A primeira delas, David Bowie, que nos deixou inesperadamente. Por cá, Almeida Santos, histórico socialista, falecia, e a RTP concedeu tempo de antena a todos os candidatos presidenciais. Dando por encerrada a saga presidencial, fiz um rescaldo à noite em que Marcelo Rebelo de Sousa ganhou. Houve tempo para uma breve explanação acerca da crise dos refugiados.

     Em Fevereiro, julguei oportuno dedicar um artigo histórico à Guerra dos Trinta Anos. Seguiu-se uma análise jurídica à eutanásia, no seguimento de propostas apresentadas com vista à sua legalização. Assinalei, mais em jeito de abordagem intimista, o decénio sobre a separação dos meus pais, período que acarretou dor e do qual não me refiz inteiramente. Os rumores de um referendo à permanência do Reino Unido na União Europeia foram confirmados por Cameron, e não pude deixar de lhe dedicar algumas palavras, dadas as inegáveis consequências que teria no quadro institucional da UE. Em Portugal, os hipotéticos "dois pais" de Jesus semeavam a discórdia entre crentes e não-crentes.

     Por Março, mês da Primavera em flor, nas palavras de Simone, também primavera pelo nosso país, com o fim do segundo mandato presidencial de Cavaco Silva e com a tomada de posse do novo Presidente. Nicolau Breyner despedia-se, após uma vida riquíssima entre o cinema, o teatro e a televisão. Lula da Silva e a Operação Lava Jato permitiam antever o que aguardava ao povo brasileiro. A histórica visita de Obama a Cuba, a polémica em torno das missas em escolas públicas e o hediondo atentado em Bruxelas foram os temas da crónica de dia 23.

     Abril. Aceitei o desafio de um leitor e comentador brasileiro, o Marcelo Pires, e publiquei um artigo respeitante ao seminário luso-brasileiro de Direito Constitucional. A exortação papal Amoris Laetitia esteve presente num texto em que me centrei no Papa Francisco. António Costa e o Governo passaram por momentos delicados, que hoje, à distância de oito meses, verificamos que facilmente ultrapassados. A Câmara dos Deputados brasileira deu o primeiro passo no sentido de se iniciar o processo de destituição de Dilma Rousseff, que, como sabemos, viria a verificar-se. Prince, O Artista, foi a baixa que se seguiu, num ano que principiávamos a intuir que não seria fácil. A viagem de Cabral ao Brasil e o quadragésimo aniversário sobre a Constituição de 1976 encerrariam o mês.

      O Dia do Trabalhador, a abrir Maio, levou a que escrevesse sobre o Direito do Trabalho. Assinalei o oitavo aniversário do blogue e, pela primeira vez, Trump surgiu entre as minhas preocupações, com as eleições presidenciais nos EUA. Não pude ficar indiferente à crise humanitária na Venezuela. Dediquei-me ao desporto e ao Campeonato da Europa, passando pelos contratos entre o Estado e as escolas privadas e terminando com uma dissertação histórica ao golpe de Maio de '26, que perfez 90 anos e que levaria à ascensão de Oliveira Salazar.

       Junho, mês do Verão, e com reflexos no clima que se vivia em vésperas do plebiscito britânico à permanência ou saída do Reino Unido da UE. Ainda a minha desconfiança, infundada, quanto à prestação de Portugal no Euro 2016. Os britânicos decidir-se-iam, efectivamente, pelo "brexit", numa análise que não descurei.

        No mês seguinte, em Julho, reparei que ainda não havia dedicado um único artigo à Revolução norte-americana. Fi-lo, portanto, no dia em que a Declaração de Independência cumpriu 240 anos. No dia 10, após uma campanha difamatória empreendida pelos media franceses e contra todas as expectativas, Portugal sagrou-se campeão europeu de futebol, levando nacionais, e não só, ao delírio. Foi o primeiro título conquistado pela selecção portuguesa. Discutiu-se, também, a eventualidade de Bruxelas aplicar sanções a Portugal e a Espanha, o que não se verificou, tendo, todavia, provocado a apreensão e o receio. Ia o ano a meio e soubemos de outro atentado na Europa, numa sequência de actos terroristas que nos roubam toda a tranquilidade e segurança.

      Após uma semana de férias, o calor trouxe-nos os desafortunadamente corriqueiros incêndios florestais, que tantos prejuízos acarretam. Se no futebol marcámos a nossa posição, nos Jogos Olímpicos ficámos muito aquém da qualidade apregoada. No seguimento da agressão ao jovem português, alegadamente perpetrada pelos filhos do embaixador iraquiano, fiz uma análise jurídica às medidas que Portugal, enquanto estado soberano, poderia adoptar.  O caso arrasta-se nas malhas da justiça... No último dia do mês, Dilma Rousseff conheceu a decisão do Senado, que se decidiu pela sua destituição.

       Setembro, mês do Outono, relativamente calmo por aqui. A sublinhar o artigo quanto às trágicas mortes no curso de comandos. Regressei às minhas raízes, à História, e achei por bem aclarar um pouco a relação histórica, cultural e linguística que une Portugal à Galiza, discutindo-se uma eventual adesão desta comunidade autónoma espanhola à Comunidade de Países de Língua Portuguesa, enquanto observador associado.

      No início de Outubro, os meandros que envolveram a candidatura de António Guterres a Secretário-Geral das Nações Unidas mereceram destaque por aqui. A sempiterna polémica entre a Uber e os taxistas teve um novo episódio infeliz. Nos EUA, Hillary Clinton e Donald Trump queimavam os últimos cartuchos perante o eleitorado estadunidense. Tivemos, pelo meio, o tradicional jantar de blogues, com um grupo simpático e bem-humorado. Na História, o episódio da crise de Avinhão, no seu enquadramento, foi por mim explanado. Por último, a Comunidade de Países de Língua Portuguesa, vulgo CPLP, com os recentes planos de introduzir uma cidadania lusófonanos vinte anos da sua constituição, teve um breve destaque.

       Novembro, com a castanha assada, deixou-nos o juízo em brasa após termos conhecimento da vitória de Donald Trump. A visita de Estado de Marcelo Rebelo de Sousa ao Reino Unido e a evocação simbólica da velha aliança luso-inglesa proporcionou que a contextualizasse no tempo. Em virtude de ser um tema do meu apreço, abordei a teoria do bem jurídico. Fidel Castro, o histórico líder cubano, afastado do poder há anos, falecia, pacificamente, em Havana.

         No presente mês, destacaria o lanche de Natal, evento inédito, e o desaparecimento de George Michael.


         Como se constata, 2016 não figurará como um dos melhores anos entre os seus pares. Não temos muitos motivos para sorrir. No panorama internacional, não se adivinha qualquer acalmia. Que pelo nosso país mantenhamos as metas impostas no que toca à recuperação económica. Pessoalmente, não tenho qualquer objectivo. O único, talvez, será o de acordar vivo e de saúde, que o demais tem saído defraudado. Quanto mais conjecturo, mais me decepciono.

         Por forma a não mais me alongar, desejo a todos um excelente 2017, em particular aos que me acompanham tão carinhosamente. Sejam felizes! Boas entradas!


A azul claro, as hiperligações para os artigos correspondentes.


26 de dezembro de 2016

George Michael (1963 - 2016).


   Nem bem o Natal havia terminado e soubemos do falecimento de George Michael. O ano que agora finda tem sido terrível no que respeita a perdas na indústria das artes.

   A minha relação com George Michael, como apreciador de música pop, começou por intermédio dos canais estrangeiros de música e pelos álbuns dos eighties que a mãe tem. Na irreverência daquela década, Michael protagonizou um dos coming out mais faseados de sempre, com canções que foram descortinando a sua sexualidade - como esquecer Father Figure, um dos seus singles mais exitosos, que, muito embora abordasse a relação de um homem mais velho com uma virginal moça, subliminarmente aludia aos famosos sugar daddies que preenchem as fantasias de muitos rapazolas, ou o álbum Listen Without Prejudice, nos seus anos de glória, com um título bem sugestivo? Desde então, sucederam-se Fastlove, Outside, entre outras, cujo foco incidiu na faceta mais íntima da sua vida pessoal.

   À semelhança de intérpretes do seu tempo, como Michael Jackson e Whitney Houston, também eles falecidos precocemente, a determinado momento a carreira de George Michael deixou-se eclipsar por escândalos relacionados ao consumo de droga e à prática de actos lascivos em locais públicos. A trajectória é a que bem conhecemos: fama imediata e abuso de substâncias ilícitas, com repercussões na imagem perante o público e na saúde. Homens e mulheres que saem de cena na casa dos cinquenta anos, no auge da maturidade enquanto artistas e pessoas. O coração atraiçoou-os, a todos.

   No dia de Natal, George Michael, que em 1984, enquanto vocalista dos Wham!, compôs e popularizou o clássico natalício Last Christmas, deixou-nos, silenciosamente, na sua propriedade no Reino Unido. Os seus fãs e o grande público não o sabiam doente. Aqui, com David Bowie, falecido no início do ano, sou levado a crer que procurou resguardar-se do assédio da imprensa, ele, que tantas páginas de tablóides encheu. Afastado das luzes da ribalta, diz-se que estaria a preparar um novo álbum de originais. Quem sabe o venhamos a conhecer, com a tecnologia de que actualmente dispomos, ou talvez fiquemos apenas - como se um apenas se lhe pudesse aplicar - com o seu legado de criatividade, de ousadia e de muita, muita despudorada provocação.

24 de dezembro de 2016

Feliz Natal.


   Estou confortavelmente sentado, defronte da árvore de Natal. Observo-a, enquanto procuro pelas palavras apropriadas para vos deixar. Num exercício de retrospectiva por textos publicados em pretéritos anos, constato que já abordei o Natal num enquadramento religioso e social. O lado menos bom - repare-se que contorno o termo "mau", dado que ganhamos sempre - de escrever é o de que, a páginas tantas, sentimos que tudo foi dito. Como não faço questão de me repetir, porque os meus pensamentos do momento, a cada ano, estão facilmente acessíveis à distância de um clique, e porque muito da minha nostalgia e da minha incerteza ficou patente na carta que recentemente publiquei, resta-me sublinhar o notório facto de estar aqui, decorrido um ano, teimosamente firme no leme, encarando o blogue sempre com o sentido de responsabilidade que ele vem adquirindo, quando mais fácil seria tirar um ano sabático. Falei acerca disso recentemente. Não há estímulo.

   Entretanto, é Natal também por aqui, por este espaço, que nem sei bem já o que é. Provavelmente será tão confuso quanto eu. Posto isto, que toquem os sininhos e as músicas natalícias, que venham as iguarias tradicionais, a neblina que enregela os ossos e a paz de dois dias, que nos dias que correm nem de dois dias é...

   A todos vós, um feliz Natal. Que o passem na medida do possível, entre familiares e amigos. Se algum o passar só, procure animar-se. Isto, escrito por mim, assume laivos de humor. Boas festas!





22 de dezembro de 2016

Christmas Gifts.


    O Natal é, por excelência, o período de confraternização familiar. O ano culmina no Natal. Há quem se refira a estes dias que aí virão como os «melhores do ano». Não sou avesso à ideia. Efectivamente, sejamos ou não religiosos, poucos são os que prescindem de uma foto, de um texto, de uma referência, por menor que seja. A troca de presentes, tão censurada, parece-me uma manifestação de carinho e cuidado. Ofertar os que nos são mais próximos não deve necessariamente ser encarado como um acto de devaneio perdulário.

    Andei pela Baixa e pelo El Corte Inglés. Muito embora não se assemelhe a um Harrods, o ECI, com a sua inauguração, em 2001, rapidamente se transformou no melhor centro comercial da cidade. Em rigor, é um armazém com as melhores marcas. Desde há uns anos a esta data, verifico que tem vindo a perder o brilho. Está demasiado massificado. Nem os funcionários mantêm a mesma elegância no atendimento. Consegui, ainda que em plena azáfama consumista, comprar três presentes, um dos quais para mim (que faço questão de pedir para embrulhar, agindo como se desconhecesse o conteúdo).

     Em virtude de não ter encontrado tudo o que queria, a Baixa é uma boa opção, e o comércio tradicional merece-nos um estímulo. Deparei-me com um artigo original, que certamente ela (a avó) jamais suporia, e o encanto de oferecer reside também no factor surpresa.
     Diminuí drasticamente nos gastos, inclusive comigo. Só adquiri o que necessitava, e permiti-me a três pequenas extravagâncias, aqui não no sentido do preço. Vejo que fiz bem, porque a árvore está recheadamente composta.


     Mudando de assunto. Perguntaram-me sobre o lanche de sábado. Correu bastante bem. Juntámos um grupo pequenino numa confeitaria conceituada. Percorremos o centro da cidade, como havia sido planeado, sob toda aquela iluminação costumeira da quadra. A Câmara Municipal esmerou-se neste Natal, todavia.

14 de dezembro de 2016

Dear Jesus.



   Lisboa, 14 de Dezembro de 2016,

   A Ti,


   Por tradição, por crença, por angústia - não descarto - cumpro com o costume de Te endereçar uma carta, sem o entusiasmo que, todavia, imprimo na invocação que habitualmente Te dirijo. Nem a fé permanece intacta ao desalento e ao desencanto que comporta viver. Dizem, os entendidos, que a Tua ausência no quotidiano dos homens se deve ao desígnio de testar até que ponto a lealdade resiste a tamanha provação. Não existiríamos em vão; o livre-arbítrio deixa-nos por nossa conta e risco. Até Tu careces de uma manifestação do nosso amor.

   Aqueles há que são pragmáticos. Se não vêem, não crêem. Recusam-se a acreditar num ser que se faz sentir desde o primeiro momento, por imposição, e que condiciona todas as nossas acções, seja por respeito ou por temor. De certo modo, lutam contra a solidão ao seu jeito, e percebem que melhor será interiorizar que estamos sós e que temos de zelar uns pelos outros. São auto-suficientes. Há os que que refutam a evidência do abandono, procurando incessantemente pelo conforto nos braços de um desconhecido, de que ninguém conhece o rosto, de que ninguém escutou a voz. Por fim, uns estão no meio-termo, no limbo entre a constatação do vazio e a imperiosa necessidade, umbilical, porventura, de encontrar um Pai celestial que os encaminhe. Eu estarei entre os últimos.

   As preces e as cartas não deixam de ser falaciosas. Um ser omnisciente conhecerá melhor o que queremos do que nós. E se a bonomia é infinita, o sofrimento dever-se-á às escolhas precipitadas. Há quem não tenha podido usufruir dessa oportunidade de ouro de poder decidir-se. Poderemos imputar-lhes um erro e, consequentemente, aplicar-lhes o castigo, na relação causa-efeito? À compreensão dos homens, soa a injusto. Os entendidos também dizem que a nossa linguagem e o nosso entendimento são inábeis para compreender os Teus motivos. Assemelha-se-me a cobardia, a resignação. Se não posso explicar, desisto e submeto-me sem questionar. É uma contradição, pois o homem é um ser pensante, que busca razões, que questiona o seu propósito na Terra. E culpa alguma terá por duvidar. Duvidar é legítimo, quando os nossos sentidos não captam essa força activa. Se me deparar com o vácuo, não acreditarei que estarei diante de um muro. A dúvida tem sido, pelos tempos, o motor do desenvolvimento em qualquer ciência. Seguramente que o Criador se congratula com o salto qualitativo entre o fogo e a lâmpada eléctrica. Somos impelidos à perfeição, o que se verifica nas leis que criamos para regular as nossas relações. Da barbárie, passámos, não sem dor, a sociedades mais justas e equilibradas. Se o homem é mau, eu diria que busca por ser bom; porém, na medida em que é imperfeito, tropeça no seu carácter.

   O bom pai zela pelos seus filhos, ajuda-os quando estes clamam pelo seu auxílio. E perdoa-lhes os falhos. Entre tamanho brilho, luzes, merchandising, não sei onde estás. Algures por aí, entre as guloseimas e os embrulhos. Haverá quem se lembre. Não gostaria de tamanho aparato pelo meu aniversário, devo dizer-Te. O que me indigna, e perdoar-me-ás a blasfémia, é que continuemos a fazer a festa, a comemorar sem o aniversariante. Já vai sendo tempo de surgires, de te evadires algures de uma caixa de oferta depositada aos pés da árvore, gesticulando e vociferando: «Hey, estou aqui! Não andaram iludidos. Tenho olhado por vocês desde aqui de cima». Até lá, não censures a descrença. É legítima, pois tudo o que temos e sabemos está numa compilação de livros a que nos sujeitam desde tenra idade e em representações, pouco fidedignas, diga-se, de uma religião que se queria tão-só da palavra, e não da imagem. Mas a presença é fundamental.

    Enquanto pensas em se hás-de encarar a minha sugestão com seriedade ou desconsiderar o meu atrevimento, peço-te que olhes por todos, e com um cumprimento reverencial me despeço.


lots of love,
Mark


10 de dezembro de 2016

Lanche de Natal.


   No último jantar da blogosfera, surgiu-me a ideia de se organizar um lanche de Natal, algo muito simples, sem grande aparato, numa confeitaria previamente escolhida. Com a colaboração do adolescente e com a imprescindível ajuda de uma leitora, a Magg, resolvemos avançar no propósito.

    Pois bem, o lanche realizar-se-á no sábado, dia 17, e todos estão convidados a participar. Poderão inscrever-se através do email disponibilizado no blogue do adolescente, que é quem está, gentilmente, a tomar as rédeas do evento. Em todo o caso, estão à vontade para me contactar, entretanto, pelo email do blogue (disponibilizado logo acima dos Seguidores). Será através do email que facultaremos todas as informações que pretendam obter.

    A pouco mais de oito dias, achei por bem divulgar a iniciativa. Após o lanche, pensei numa caminhada pela avenida da Liberdade, requintadamente ornamentada.


(o banner é da autoria da Magg)



3 de dezembro de 2016

Moments.


   No domingo passado, com um tempo não tão pouco convidativo, aceitei o convite de um amigo para assistir à sessão da tarde no Amoreiras, aproveitando para pôr a conversa em dia, jantando por lá. Devo dizer que aprecio imenso o tempo chuvoso, as noites longas, os dias pequenos, simultaneamente. Para sair de casa, com efeito, não é aconselhável.

   Assim foi. A escolha recaiu num filme que está em cartaz, American Honey, do qual, em verdade, não gostei muito. Aborda a vida tal qual ela é, nua e crua, no excitante desafio da sobrevivência. Todavia, é demasiado extenso para o objecto em questão, repetindo-se a lógica com excessiva recorrência. O filme é pouco inovador. Talvez seja o meu sentido estético e crítico que é pouco apurado. Não recomendo, portanto.

   Optámos por um restaurante ali mesmo, no centro comercial, que, pela noite, as portas do céu abriram-se sobre nós. Felizmente, tenho uma mãe-galinha que me obriga a sair de casa munido de guarda-chuva. Levo sempre um mínimo, o modelo mais pequeno que alguma vez vi à venda. Bom, como calculam, o meu amigo molhou-se todo, enfim. Com os meus problemas respiratórios, não o pude acompanhar na mística que comporta descer a Rua das Amoreiras à chuva.

    Quis levar-me a um bar gay-friendly, ou, como ele diz, ironizando, straight-friendly. Purex. Não conhecia; aliás, saí pouquíssimas vezes à noite. Evito sair à noite. Não gosto de bares, nem de discotecas. Tinha música ambiente, bebi já-não-sei-o-quê, sem álcool, evidentemente, e ficámos a trocar ideias, até que me acompanhou a casa. Cedo, que não sou pessoa de andar na rua até horas tardias.

     Uma semana depois, sugeriu-me a visita a alguns museus, amanhã de manhã, e um almoço, em seguida. Com o tempo assim, estou na dúvida em aceitar.
     Antes que magiquem tontarias nessas mentes fecundas e perversas, somos amigos, tão-só amigos. Convida-me porque gosta da minha companhia, sem idealizações românticas. Acredito que com muitos já andasse aos beijos (Mark, como és ingénuo!; beijos?), porque ele até nem é nada de se deitar fora. Deus Nosso Senhor deu-me olhos, e bons, segundo o oftalmologista, da última vez que me submeti a um exame à visão.

      Já está, escrevi um pouquinho sobre mim. Um texto trivial, que é o que se quer, para não se pensar muito.

28 de novembro de 2016

Fidel (1926 - 2016).


   Fidel morreu. O timoneiro, o revolucionário. A personagem apaixonante, que despertou, pelas décadas, a admiração e o respeito de muitos e o ódio de outros. Fidel, entretanto, consegue reunir algum consenso na hora da morte, e a evocação da sua figura tem-se sobreposto aos pecados do regime cubano. Fidel, contrariamente a Estaline ou a Mao, paira entre nós como o homem destemido, obstinado, que enfrentou a superpotência que mora ali ao lado, que discursava por horas, envergando a farda militar, que nos últimos anos deu lugar aos fatos de treino.

   Fidel foi, em síntese, o símbolo do anti-imperialismo, da vontade de rumar em sentido inverso ao que seria esperado. Quanto tomou o poder, em 1959, Cuba era o que se poderia chamar um casino royal dos EUA, onde proliferava todo o tipo de negócios, servindo a administração cubana como mera cortina de fumo. Após a conquista do poder por Castro, acompanhado pelo lendário Che Guevara, Cuba tornar-se-ia o bastião socialista no Golfo do México. O pequeno estado insular esteve no epicentro da famosa crise dos mísseis, de 1962, que por pouco não despoletou o terceiro conflito armado de dimensões mundiais. Fidel já havia consolidado o seu poder, com a vitória face à tentativa estadunidense de reverter a Revolução, no célebre episódio da invasão da Baía dos Porcos, em 1961. Com a derrota frente ao exército estadunidense, em 1898, Espanha viu-se expropriada da sua ilha, e a influência dos EUA manifestar-se-ia por décadas, pelo que Fidel e a ascensão do socialismo representavam uma ameaça a escassos quilómetros da Florida, intolerável em contexto de Guerra Fria.

    O apoio político e logístico da União Soviética permitiu contrabalançar o embargo económico imposto sobre a ilha pela administração Eisenhower. O bloqueio e o corte de relações diplomáticas, só restabelecidas em 2014, encaminharam o país para o isolamento, situação que agudizaria com a queda do bloco soviético, em 1991. Cuba ficou conhecida pelo surpreendente nível de bem-estar e de desenvolvimento, ainda que com todos os reveses. Nos domínios da saúde e da educação, Cuba posiciona-se em lugares cimeiros, havendo procura internacional pelos avanços na investigação a determinadas enfermidades do foro neurológico, designadamente.

    O longo período em que Fidel esteve na liderança dos destinos da nação cubana não foi imune a erros. A repressão, a tirania e a intolerância foram uma constante pelos anos, e os exilados políticos nos EUA não hesitam em relatar as atrocidades cometidas pelo regime. Fidel foi perseverante nas suas convicções políticas; parafraseando Maquiavel, um líder deve ser temido, mais do que amado. Enquanto político, a minha vénia. Sobreviveu a tudo, inclusive ao ostracismo internacional, à dissolução da URSS, às investidas dos EUA, aos opositores e críticos, à crença no seu suicídio político despojado do suporte soviético. Só a morte o derrotou. Esta é a evidência incontornável. E em quem governou por tanto tempo em ditadura, é curioso assistir ao vazio que a sua partida nos deixa.

25 de novembro de 2016

A Teoria do Bem Jurídico.


   O conceito de bem jurídico foi teorizado por jurisconsultos das mais diversas escolas legalistas. Encontra previsão constitucional no artigo 18.º, número 2 da Constituição da República. Primeiramente, tem de haver um bem digno de tutela penal. Aos juízes está o dever de não aplicar qualquer norma que considerem inconstitucional, no sistema de fiscalização difusa prevista no nosso ordenamento. Uma norma que não seja aplicada por três vezes, por ser considerada inconstitucional, queda banida do ordenamento jurídico.

    A pergunta que se impõe: e que bens serão dignos da tutela penal? Pegando num exemplo aleatório, no artigo 247.º do Código Penal, verificamos que o legislador previu a criminalização da bigamia. Alguém que contraia casamento, sendo previamente casado com outra pessoa, é punido com determinada pena de prisão ou pena de multa. O legislador quis, com esta norma, proteger os direitos do cônjuge de boa fé, ou dos cônjuges de boa fé, sem motivações morais subjacentes. Noutro exemplo, o direito penal não criminaliza o incesto. O direito penal, em suma, não se imiscui nos valores morais, mas sim nos direitos concretos do indivíduo. É um direito de ultima ratio, utilizado quando o confronto entre o Estado e o indivíduo não é mitigado pelo direito civil ou por outro ramo do Direito. Para se tornar mais compreensível, proponho um terceiro exemplo: se alguém entra numa loja e parte artigos de propósito, há dano, há responsabilidade penal; entretanto, se o fez sem dolo, há dano, mas a responsabilidade é meramente civil.

     Para Johann von Feuerbach (1775 - 1833), o crime consiste  na violação de um direito subjectivo (tem de haver um agente que viole o interesse, o direito de outrem). Há um cunho vincadamente liberal. O Estado intervém o mínimo possível, na salvaguarda do interesse do indivíduo. Antes de bem jurídico, falava-se em direito subjectivo. Era este o termo usado pelos grandes penalistas até ao século XIX. O conceito de bem jurídico foi teorizado por Birnbaum (1792 - 1877). No pensamento deste autor, o direito penal caracterizava-se pelas infracções que lesassem o objecto dos nossos direitos, diferentemente da lesão dos direitos subjectivos. Houve deslocação da tónica de uma perspectiva mais subjectiva para uma mais objectiva. A lesão do direito subjectivo  implica uma relação ofensor - ofendido, ao passo que a ofensa ao objecto dos nossos direitos observa mais para a consequência, permitindo destacar o objecto dos sujeitos. Pelos finais do século XIX, Karl Binding (1841 - 1920) adoptou a teoria de Birnbaum na sua obra clássica - Das Normas e da sua violação (1872). Dava-se o apogeu do positivismo. Na corrente positivista, o legislador decide o que é e o que não é crime, cabendo ao cidadão a obediência. Tão-pouco se discute se serve ou não os fins do Estado. É ao legislador que compete definir o que é o bem jurídico. « O Direito molda o mundo. »  É normativo. Cria os valores, dita os que são mais importantes e os que devem ser respeitados ou sacrificados.

      Franz von Liszt (1851 - 1919), inspirado pelos dados empíricos da Escola Positiva Italiana, contrariou tudo. No entendimento deste autor alemão, não é o legislador que conforma o mundo. Ele apenas resolve os problemas que surgem, daí a divergência de direitos nas várias sociedades.

      Nem tudo é relativo. As culturas e as ideologias vigentes influenciam determinantemente. Os crimes mais graves nem sempre foram os que são considerados como tal nos dias que correm. No nosso Código Penal há hierarquia de crimes: os crimes contra as pessoas surgem primeiro, todavia, no liberalismo do século XIX e nas primeiras codificações, os crimes contra o Estado assemelhavam-se como os mais graves que poderiam ser cometidos.
       O artigo 291.º do Código Penal enuncia a pena aplicável a quem conduzir veículo rodoviário sem condições de o fazer ou oferecendo perigo pela violação grosseira das regras da circulação rodoviária; o artigo 292.º do mesmo código pune a condução em estado de embriaguez; o artigo 137.º pune o homicídio por negligência. Suponhamos em alguém que matou preenchendo todos os requisitos dos artigos. No caso do artigo 292.º, há protecção contra os acidentes da mesma forma que nos demais artigos. Estamos perante uma situação de concurso. Quero chegar apenas aqui: não se pode punir o indivíduo duas vezes pelo mesmo facto típico e ilícito.

       Knut Amelung, jurista, professor de direito penal alemão falecido recentemente (1939 - 2016), defendia que os bens jurídicos têm de se identificar com o dano que causam à sociedade. Protege-se, dessa forma, a interacção entre as pessoas, visando a que as suas condutas não molestem a sociedade em que estão inseridas. Temos de atender aos comportamentos que põem a sociedade em crise de valores. Niklas Luhmann (1927 - 1998), por seu turno, entendia que a sociedade é um sistema que desempenha determinadas funções. O Direito seria um meio de estabilizar conflitos dentro do sistema. Günther Jakobs (1937), ilustre jurista alemão, defende um entendimento muito curioso e até polémico: efectivamente só há um bem jurídico, que é a norma em si, uma vez que a norma contém o que deve ser respeitado,

       Do outro lado do oceano, nos EUA, surgiu uma doutrina revolucionária. A teoria das Broken Windows. Esta teoria diz o seguinte: as pessoas interiorizam que as normas são para cumprir, ou não, o que nem sempre é benéfico, porque o Estado não consegue perseguir todos. Sucintamente, o Estado tem de fazer com que as pessoas interiorizem as normas. No limite, esta concepção pode acarretar o fim da capacidade crítica de cada um. Também tem implicância com o fim das penas, na medida em que se defende, implicitamente, que é preciso aplicar as penas porque senão as pessoas deixariam de acreditar no Direito.

      Terminando o périplo pelos autores, Figueiredo Dias, o pai do nosso Código Penal, argumenta que não conseguimos ir buscar à Constituição, na maioria dos casos, os bens jurídicos. Para o Professor, há uma relação de analogia substancial do quadro de valores constitucional do Estado de Direito para consagrarmos as opções correctas. Não é preciso haver uma relação directa com a Constituição para daí extrairmos o bem jurídico. Ou seja, passo a explicar: a Constituição não contém injunções expressas de criminalização. Não se retira autonomamente do facto de haver tutela da vida humana para o homicídio ser considerado crime pelo legislador.

       O conceito de bem jurídico envolve potencialidades: um guia para o legislador, um guia para o intérprete aplicador da norma e tem ainda uma função crítica: o intérprete pode sindicar a opinião do legislador e recusar a sua aplicação.
       Terá o bem jurídico uma função crítica? Vejamos o exemplo do capítulo V do Código Penal, que versa sobre a liberdade sexual, a autodeterminação sexual. Artigo 169.º, Lenocínio. Há várias formas de preencher este artigo, com o proxeneta, com, eventualmente, a dona da moradia em que se realizam as práticas sexuais... E havendo acordo livre entre a prostituta e a dona da pensão? Será imoral? A moralidade pública não é um bem jurídico. Nesse sentido, surgiu uma ideia fundada no princípio do dano, vinculada à faceta liberal de John Stuart Mill: a punição de alguém está relacionada a haver um dano cometido sobre outrem. E a legitimidade da punição está na lesão a outrem. Esta ideia ganhou receptividade em Inglaterra, no final dos anos sessenta do século anterior. Não trouxe esta teoria inocentemente. Foi um rebuçadinho para quem se deu ao trabalho de ler o artigo jurídico até ao fim. A teoria demonstrou que não se deveriam punir a homossexualidade ou a prostituição apenas porque ofendiam, na época, a moralidade pública.

       Para não mais me alongar, o Direito Penal deve tutelar valores vitais para o desenvolvimento, em liberdade, da sociedade humana, e não os nossos valores morais.


18 de novembro de 2016

A aliança luso-inglesa.


   O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, reuniu-se com a Primeira-Ministra britânica, Theresa May, e com a Rainha Elizabeth II, ou Isabel II, como preferirem; eu, em determinados casos, evito as traduções, sobretudo de nomes próprios, que não devem ser traduzidos (permitam-me um aparte, que me ocorre de momento: jamais me esquecerei do quão fulo ficava com a adaptação para o castelhano, por parte de uns amigos espanhóis da mãe, do meu segundo nome próprio).

    Esta visita vem ao encontro de um anseio de Marcelo. Pelo que pude perceber, há algum tempo que o Chefe de Estado português desejava encetar uma visita de Estado ao velho aliado britânico. Encontrar-se com Theresa May ajuda a apaziguar os receios da comunidade portuguesa no Reino Unido, assustada, e muito naturalmente, com as nefastas consequências da saída do país da União Europeia, que está à distância da invocação da respectiva cláusula do Tratado de Lisboa por parte do executivo britânico. Marcelo, entretanto, veio a público acalmar os mais cépticos, assegurando que transmitiu à líder do governo britânico os receios dos portugueses emigrados em terras de Sua Majestade. E seria com a Rainha que Marcelo trocaria umas palavras tornadas públicas através do site da Presidência da República. Elizabeth, que tem aquele semblante austero e compenetrado, não resistiu ao charme do Presidente português, sorrindo e admirando-se com a historieta contada, da presença de Marcelo aquando da sua chegada e da comitiva britânica a Lisboa, em 1957, pelo Terreiro do Paço. Filho de uma figura do Estado Novo, Marcelo, qual privilegiado, pôde assistir de perto à entrada triunfal de Elizabeth na capital portuguesa.

    Portugal tem uma relação histórica com Inglaterra que remonta ao século XIV, mais concretamente a 1373, com o Tratado de Londres, que estabeleceria as bases do convívio entre os dois reinos até à actualidade. Foi, aliás, no contexto desta aliança que Inglaterra ajudaria o Mestre de Avis, o futuro D. João I, na batalha de Aljubarrota, uma das mais decisivas e significativas vitórias de Portugal frente a Castela, permitindo a consolidação da nossa independência. No ano seguinte à batalha, em 1386, a aliança seria consolidada com o Tratado de Windsor - ainda em vigor, e que alteraria para sempre a história de Portugal. Sustentando-se na aliança, Inglaterra ajudaria Portugal na Guerra da Restauração, entre 1640 e 1668; pediria a participação de Portugal ao seu lado na I Guerra Mundial; pediria para usar a base dos Açores na II Guerra Mundial, o que seria aceite por Portugal, neutral no conflito; e, mais recentemente, na década de oitenta do século passado, invocaria ainda a aliança para poder voltar a utilizar a base dos Açores durante a guerra pela recuperação das Falkland, invadidas e anexadas por ordem do regime militar da Argentina. Portugal, entretanto, muito embora o apoio inglês tenha sido fulcral para sobreviver às investidas castelhanas e, posteriormente, espanholas, viu-se traído pela velha amiga na questão do Mapa Cor-de-Rosa, quando pretendeu unir Angola e Moçambique através dos territórios entre ambos, e, na década de sessenta do século anterior, ao pedir auxílio por ocasião da anexação do Estado Português da Índia pela recentíssima União Indiana, a mando de Nehru. Pelos séculos, a aliança foi sendo confirmada sucessivamente em diversas datas, tendo também estado suspensa durante o obscuro período da incorporação de Portugal na Monarquia Católica dos Habsburgo, entre 1580 e 1640. Não nos esqueçamos, merecendo um destaque especial, que a aliança levou a que Portugal não aderisse ao Bloqueio Continental decretado por Bonaparte ao Reino Unido, o que arrastou Portugal para um flagelo que teve repercussões por todo o século XIX.

     A aliança é evocada em praticamente todos os actos oficiais que envolvem Portugal e o Reino Unido. Há quem aluda a subserviência portuguesa - é uma retórica observada nos espanhóis, por manifesto despeito e desconforto, e em alguns sectores da sociedade brasileira, provavelmente pelas remessas de ouro enviadas para Londres. Eu diria, pondo de lado os preconceitos de uns e de outros, que a aliança, não obstante o preço alto que teria para Portugal, surgiu no momento certo, e desengane-se quem crê que Portugal foi ingenuamente ludibriado pelos ingleses. Portugal precisou da aliança, tanto quanto os ingleses, que nunca quiseram uma Espanha forte. Ambos sabiam-no, o que justifica a sujeição, principalmente da parte mais fraca, Portugal, que sem o apoio inglês certamente seria, hoje, a décima oitava autonomia espanhola.  Em suma, a aliança representa uma sábia decisão estratégica do último monarca da Dinastia de Borgonha, O Formoso D. Fernando, e dos seus sucessores pelo tempo. Pombal foi-lhe crítico. O Tratado de Methuen, do reinado de D. Pedro II, estagnaria a manufactura têxtil portuguesa e atrasaria o desenvolvimento do reino, e não pode ser compreendido sem atendermos ao antigo vínculo, mesmo sob um olhar do século XVIII. Com a manufactura, foram Tânger e Bombaim, foi o ouro, a que já aludi, restando a soberania.

       Nos dias que correm, Portugal e o Reino Unido estão inseridos em estruturas internacionais, das quais enumero duas das mais relevantes, a União Europeia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte, pelo que a aliança vem perdendo a pujança de outrora. Quedou-se como um resquício histórico, que convém lembrar em situações formais, honrando a história e os laços seculares. Mas ela está em vigor, e o futuro, incerto, num mundo perigoso e volátil, poderá proporcionar a sua reactivação desde o Arquivo Nacional...

13 de novembro de 2016

A Rapariga Dinamarquesa.


   Bem sei, bem sei, o filme estreou há cerca de um ano, sensivelmente. Não sendo um apaixonado por cinema, por mais estranho que pareça, espero que os filmes sejam emitidos nuns canais premium que assinei. Gosto de ver uma boa obra à noite, munido de uma chávena de chá ou de leite quente. Aguardar impacientemente por uma estreia sucedeu pouquíssimas vezes. A última deu-se com o Maleficent, em 2014, portanto, e foi uma decepção na história, compensada pela actuação magnífica da senhora Jolie.*

    Mas estou aqui para falar noutro filme. O título, em si, pouco me disse. Considerei simplista - desconhecia que era biográfico. Na medida em que não presto atenção, tão-pouco sabia sobre o que versava a história. Ontem, verificando os filmes que foram exibidos durante a semana, dei com este, e resolvi ir ler a descrição. Pensei: "Bom, todos já o viram, deixa lá perder aqui duas horas".

     Entediante no início, fui começando a intuir o desenvolvimento. Um jovem garboso, pintor, casado com uma rapariga, lá está, dinamarquesa. Veste-se de mulher para posar para a esposa, e ganha-lhe o gosto. Okay, muito giro. Não, não tão banal. O filme aborda a transexualidade nos anos vinte do século passado, com tudo o que acarreta, como a cirurgia de redesignação sexual - a primeira, mal sucedida, num experimento absurdo com as limitações científicas e médicas da época. Há, a meio, um amor impoluto e sublime que sobrevive a tudo, até à evidência de que não estamos perante um casal composto por um homem e por uma mulher, com o manifesto sofrimento que essa constatação provoca. As derradeiras cenas, impactantes, alternam entre a beatitude e a tragédia. Imagino que os meus leitores são bastante mais atentos e interessados do que eu, estando, então, à vontade para discorrer sobre o argumento.

       Recomendar um filme, que depreendo conhecido por todos, não faz grande sentido. Ainda assim, para quem não viu, veja. Os actores principais saíram-se bem, com interpretações magistrais. O enredo tem aquela veracidade tão estimulante, se tanto para mim. Fica a sugestão.

* Errata: Vi o filme "O Meu Nome é Alice", entretanto. Presumo que foi a minha última estreia.

9 de novembro de 2016

Trump, o dia seguinte.


     Em rumo contrário ao que a maioria das sondagens anunciava parcas horas antes, Donald Trump conseguiu ser eleito o quadragésimo quinto Presidente dos Estados Unidos da América. A sua principal oponente, Hillary Clinton, colheu os frutos de uma campanha que não convenceu o cidadão médio estadunidense, ou norte-americano. O êxito, é importante que sublinhemos, não é inteiramente de Trump. Há demérito da candidata do Partido Democrata, que representou o sistema e que sofreu o impacto do descontentamento dos seus compatriotas. Em artigos anteriores, eu enunciei o que penso de Trump, pelo que me escusarei a repeti-lo. Estudar o fenómeno Trump fora dos EUA seria importante, uma vez que o candidato republicano granjeou simpatia entre todos os que procuram uma política externa dos EUA menos intervencionista. No seio do seu país, acredito que as medidas proteccionistas - e populistas - de alguém que não possui a experiência política de Hillary, que jogou contra si, levaram os estadunidenses a optar pelo que lhes parece ser o mal menor.

     O mapa dos EUA com os votos contabilizados é peremptório: Trump ganhou, e fê-lo também em tradicionais bastiões democratas, como o Wisconsin e New Hampshire. Um enorme mapa vermelho cobre o território dos EUA. Na Nova Inglaterra, tradicionalmente democrata, Hillary manteve o status do seu partido. Mais abaixo, assegurou a Virgínia, onde se temeu o descalabro. Na costa ocidental, por seu turno, Oregon e Washington ficaram a azul. Na Flórida, um dos estados decisivos, Trump saiu vitorioso, impondo-se gradualmente como o futuro líder. Ao princípio da manhã, era evidente a vitória de Trump, ainda que a confirmação final não passasse de mera formalidade. Ohio rendeu-se, o Michigan também, e a partir daqui sabíamos o desfecho. Os estados do sul, rurais, que são historicamente republicanos, completaram a noite de sucessos para Donald Trump. No cômputo final, Hillary conseguiu obter mais votos populares, o que, todavia, não se reflectiu em assentos no colégio eleitoral, em virtude de o sistema estadunidense prever o sufrágio indirecto. Trump obteve 289 assentos - bastando para ser eleito 270 - e Hillary ficou-se pelos 218. Amarga derrota, que nem as populosas Califórnia e Nova Iorque, fiéis ao Partido Democrata, conseguiram contrariar. De modo similar, no Senado e na Câmara dos Representantes - o Congresso - Trump governará com apoio, tendo conquistado a maioria nas duas câmaras.

      Donald Trump afigurou-se como o candidato do homem branco, rural, trabalhador assalariado, que cativou, nas urnas, hispano (os republicados perderam no Novo México, entretanto) e afro-americanos e as mulheres, muito embora se tenha dirigido a todos nos termos mais reprováveis e indignos. O discurso odioso que propagou tornou-o, para muitos, um fait-divers, um entertainer de mau gosto, alguém vindo do social com aspirações pouco credíveis e levianas. Eu alertei, e fi-lo nomeadamente no último artigo em que opus Trump a Hillary, para o perigo de subestimar a ameaça Trump, máxime atendendo à deriva à extrema-direita a que vamos assistindo (cuide-se a França, e a Europa, com Marine Le Pen). No momento certo, com o aumento da tensão com a Rússia e com a desconfiança dos estadunidenses quanto ao seu futuro, quanto à política de emprego e quanto à deslocalização das grandes empresas, Trump proferiu as palavras que os cidadãos quiseram ouvir, ainda que tenham preenchido o boletim de voto com uma nuvem de incertezas pairando sobre as suas cabeças. Hillary representaria a continuidade, e tão-pouco foi uma figura imune a escândalos e a mexericos. Enquanto Secretária de Estado, estimulou conflitos em determinados pontos do globo, tornando-se numa mulher susceptível de gerar opiniões contraditórias e inimizades, não só entre os seus compatriotas como por quem não é cidadão estadunidense e não habita nos EUA. Eu diria que, por cá, pela Europa, e pelo Médio Oriente, houve quem suspirasse de alívio com o falhanço de Clinton.

        No púlpito, entre aplausos entusiastas, Trump foi mais comedido nas palavras, agradecendo à sua adversária e proclamando-se o presidente de todos os americanos. Será impossível passar um pano sobre a propaganda mal intencionada e xenófoba que fomentou. Em boa verdade, a realpolitik não se compadece de palavras vãs; Trump terá de trabalhar com mexicanos, com mulheres, com africanos, e estas primeiras afirmações vão ao encontro dessa postura mais conciliadora. A polarização, contudo, é inevitável. Uma parcela significativa de estadunidenses não se revê em Trump, e certamente não concordará com a administração emanada desta nova ordem.

        Não confio num Trump menos interventivo. A política belicosa dos EUA não dependente inteiramente do Chefe de Estado e de Governo que reside na White House, pois o intervencionismo estadunidense perpassa presidentes democratas e republicanos. Nas décadas recentes, Clinton ingeriu nos assuntos internos de outros Estados, Bush idem. A indústria de armamento envolve milhões e gera muitos interesses. Aliás, julgo ser pertinente o equilíbrio de forças na Europa, quando assistimos à reafirmação de uma expansionista Rússia, o que é diferente da afronta e da provocação gratuita. Para Portugal, a vitória de Trump não acarretará câmbio algum; Portugal foi um dos primeiros países a reconhecer a independência dos EUA logo no século XVIII e é membro fundador da OTAN. A menos que Trump, o que duvido, ponha em causa a estabilidade da aliança atlântica, tudo se manterá como está.
       Num exercício hipotético, possuindo a cidadania dos EUA, neste momento estaria preocupado com as medidas que Trump prometeu implementar, particularmente na saúde, com a revogação dos planos da administração cessante. A saúde continuará a ser fonte de negócio por lá, e o acesso universal aos seus cuidados estará comprometido, afectando milhões de pessoas carenciadas.

        Como observador e, se me permitem, cronista, estou expectante com os primeiros meses de governo Trump. Cederá o Presidente eleito ao establishment, ou, pelo contrário, revolucionará a nação estadunidense tal qual a conhecemos?

6 de novembro de 2016

Moments.


    As últimas semanas têm sido aborrecidas. Aproxima-se o período do ano que mais prazer me proporciona - o Natal. A bem ver, dou por mim a perguntar-me quanto ao que ainda me faz brilhar os olhos na quadra, se a iluminação, se o espírito da época, se as guloseimas. É provável que seja uma combinação. Em termos estritamente familiares, foi-se o tempo em que havia verdadeira comunhão e alegria. Os velhos, mais velhos estão, e os novos seguiram as suas vidas. Assisto à progressiva deterioração da saúde física e mental da avó, que desde a morte do avô nunca mais recuperou. A depressão tem-na acompanhado pela vida. Há dias, fui com ela ao especialista em saúde mental. Sublinhou a sua lucidez, a riqueza do discurso, mas diagnosticou-lhe uma depressão profunda. O remédio é sair de casa, espairecer. Tento sair com ela, levando-a a tomar um chá, a passear um pouco. Custa-lhe a caminhar. A sua magreza é deplorável. Alimenta-se pouco. Como diz o Herman José, envelhecer não tem realmente nada de bom. Para quê contornar o irrefutável? Envelhecer é um horror, e acompanhar o processo dos que nos são afectivamente mais próximos é angustiante.

    A meio destes pequenos dramas pessoais, ando à minha procura. Julgo-me perdido algures por aí. Ou talvez nunca me tenha perdido. Árduo trabalho ser adulto, sobretudo num mundo sacana. Estamos sós neste invólucro de matéria perecível. Viver não é bom, não é agradável. É um desafio, sem escolha prévia, que uns ganham e outros perdem. O equilíbrio de cada um ajuda a suportar melhor ou pior as evidências. Bem-aventurados os que atravessam a vida na ignorância ou no optimismo. São ambos uma bênção.

31 de outubro de 2016

CPLP - vinte anos depois.


    A Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) cumpre vinte anos em 2016. Foi surgindo paulatinamente, após uma concertação de esforços entre os mais altos dignitários de cada país lusófono. A bem intencionada comunidade, aparentada com a La Francophonie e com a Commonwealth of Nations, pretendeu aprofundar os laços históricos, culturais e linguísticos que nos unem, tomando como certo de que seria exequível estimular tanto quanto possível o intercâmbio entre os setes país constitutivos, aos quais se juntou Timor-Leste, após conquistar a sua independência, em 2002, e a Guiné-Equatorial, no seguimento de um meticuloso processo de adesão (mui pouco pacífico).

    Duas décadas volvidas, os objectivos da CPLP não foram, em parte, atingidos. A organização internacional ficou aquém da sua potencialidade. Tão-pouco o Instituto Internacional da Língua Portuguesa, intimamente ligado à Comunidade, responde às pretensões que o fundamentam, porquanto, contrariamente ao Instituto Cervantes, não conseguiu implantar-se com devido sucesso em países alheios à CPLP, promovendo a difusão da língua de Camões. Saliente-se, entretanto, o mérito da CPLP, pela sua influência, no momento de dirimir conflitos internos de alguns dos Estados-membros da organização, como se verificou aquando da crise política na Guiné-Bissau.

    Portugal ambiciona mais da CPLP, e os projectos de uma hipotética cidadania lusófona são conhecidos. Essa cidadania, que se somaria à cidadania nacional de cada Estado-membro e, no nosso caso, à cidadania europeia, que é uma realidade desde 1992, acarretaria, por inerência, a livre fixação de potenciais cidadãos lusófonos no espaço da CPLP. Pelo carácter fraco da organização e pelos obstáculos que o Brasil e Angola levantam, dificilmente António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa lograrão um consenso que a viabilize. Não há empenho político entre os dirigentes lusófonos, não há vontade. O Presidente do Brasil, Michel Temer, não estará presente, pelo que li, na Cimeira que decorre entre hoje e amanhã em Brasília. O mesmo se diga do Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos. Os Chefes de Estado e de Governo dos dois maiores países de língua oficial portuguesa subestimam claramente o encontro com os seus homólogos lusófonos e inclusive com o futuro secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, que participará na Cimeira, tornando a CPLP em uma entidade residual entre as muitas a que os seus países pertencem.

    Louve-se a aprovação, à partida, de novos cinco observadores associados, que se juntarão à Geórgia, à Turquia, às Maurícias, ao Senegal, ao Japão e à Namíbia. São eles, a saber, a Costa do Marfim, o Uruguai, a República Checa, a Eslováquia e a Hungria. Surpreendente, eu diria. Numa postura tradicionalmente portuguesa, que acredito exportada para as suas antigas possessões, subalternizamos uma organização que recolhe interesse em nações com as quais, aparentemente, pouco temos em comum. Se há vínculos com o Uruguai, a Namíbia, as Maurícias, a Costa do Marfim, o Senegal e o Japão, que os há, o que dizer, designadamente, da Geórgia ou da Hungria?

     A Comunidade não pode afastar-se do seu propósito primitivo. Eu fui, como tive a oportunidade de explicar ao tempo da discussão, um defensor da adesão da Guiné-Equatorial. Não repetirei os argumentos invocados, mas não é legítimo apontar as debilidades democráticas e no respeito pelos direitos humanos da Guiné-Equatorial quando sabemos de Estados-membros regidos por oligarquias a que muitos preferem não fazer caso. E o território que hoje compreende a Guiné-Equatorial e as suas ilhas adjacentes pertenceu a Portugal até finais do século XVIII; fala-se, inclusive, um crioulo português numa dessas ilhas. Não obstante, a Guiné-Equatorial deve cumprir com os compromissos firmados, entre os quais o de implantar com sucesso a língua portuguesa no ensino e na administração do Estado, porque está em causa a credibilidade da organização, fortemente abalada com a adesão daquele pequeno país da costa ocidental africana.

     Uma macro-comunidade de nações lusófonas ou uma confederação, sendo mais ambicioso, aproveitaria aos mais de 250 milhões de lusófonos dispersos por cada continente da Terra. Sabendo-se que os Estados carecem de cooperar entre si, a língua é um elemento identitário imprescindível no diálogo entre as nações, e o passado que comungamos, lusófonos, merece ser enaltecido, beneficiando a todos, mormente no domínio económico, que os números são uma realidade e impõem-se.

23 de outubro de 2016

O Estado Pontifício e o Papado.


   Pelos séculos da Idade Média, o Estado Pontifício conseguiu ampliar persistentemente as suas fronteiras, enquanto potência territorial, particularmente com o Papa Inocêncio III (1198 - 1216), por meio das designadas "recuperações", logrando apoderar-se de territórios na Toscana, do ducado de Espoleto e da marca de Ancona. As investidas papais, no seguimento da queda dos Hohenstaufen, visando expandirem o seu poder a toda a península itálica do norte, saíram goradas, uma vez que as cidades daquele espaço geográfico souberam defender arduamente a sua soberania.

    Com o Papa Bonifácio III (1294 - 1303), ascendeu ao pontificado alguém oriundo da velha e prestigiosa família aristocrática dos Gaetani e que, na esteira dos seus predecessores, tratou de impor com determinação, ambição e pragmatismo a autoridade do Papa. A bula Unam Sanctam, promulgada por Bonifácio em 1302, evidenciava expressamente a sua intenção de que o papado exercesse um papel influente. Simultaneamente, numa atitude hostil à França, manifestou a sua oposição às pretensões hegemónicas do imperador, que, como em voga naqueles tempos, deveria estar subordinado ao poder da Igreja. Entretanto, não muito tempo depois, este Sumo Pontífice passaria pela humilhação de ser aprisionado em Anagni pelo chanceler francês. A intolerável pressão francesa forçaria, mais tarde, o seu sucessor, Clemente V (1305 - 1314), a transferir - no célebre episódio histórico - a residência papal para Avinhão, no sul de França. Esta subjugação duraria por perto de setenta anos, durante os quais os papas estiveram submetidos à autoridade do monarca francês. Roma, no seguimento dessa transferência, tornou-se uma cidade provincial, em que os habitantes procuraram incessantemente afastar o vil jugo da nobreza, embora todas as tentativas de instalarem um governo republicano tivessem fracassado. Em 1312, verificou-se a insurreição da cidade opondo-se à coroação de Henrique VII; as diversas famílias rivais da nobreza haviam ocupado os locais estratégicos de Roma, posto que Henrique não conseguiu deslocar-se do Palácio de Latrão até à Basílica de São Pedro. Desse modo, em virtude das contendas que opunham as várias facções, a cerimónia da coroação ocorreu em Latrão. Menos bem sucedido foi Luís da Baviera, sucessor de Henrique VII, conquanto a sua coroação em Roma tivesse decorrido com grandes celebrações, graças ao senador romano Sciarra Colonna, representando o povo romano. O acto, claramente provocatório ao papa, não obstou a que os romanos, ainda que adulados, obrigassem o imperador a fugir poucas semanas transcorridas, retirando-se da cidade. Roma submeter-se-ia ao papa, mas os tumultos não abrandariam.

    Por meados do século XIV, o orgulho romano renasceu, quando Cola di Rienzo, de origens modestas, promoveu, em Maio de 1347, uma sublevação como "tribuno do povo romano". Nesta revolução, determinou a expulsão da cidade, munido de suporte popular, de todos os clãs da aristocracia. Mau grado o seu espírito destemido, Cola di Rienzo estava muito à frente dos seus contemporâneos em visão política, mirando para lá do horizonte egoísta dos regionalismos, pois propugnava por uma Itália unificada - o que só assistiríamos no século XIX, quatrocentos anos depois. Petrarca, poeta, igual defensor de uma identidade nacional italiana, reconheceu em Cola di Rienzo uma inspiração aos seus ideais, endereçando-lhe a expressão do seu reconhecimento.

     Porém, todos os projectos de instituição de um parlamento legislativo para toda a Itália, devendo reunir-se em Roma, não passaram de uma utopia. Os títulos outorgados a Cola di Rienzo de pouco adiantaram. Viu-se obrigado a fugir. Regressaria em 1354, com o apoio do papa, perecendo assassinado numa infeliz conjura popular. Apenas o cardeal espanhol Gil Álvarez Carrillo de Albornoz, legado pontifício, conseguiu, com punho firme, restabelecer a ordem nos Estados da Igreja, o que, ainda assim, não passou de um mero interregno. Em 1377, Gregório VII veio de Avinhão e os papas tornaram a Roma; mas, durante o período do cisma, não foram capazes de se impor nem aos barões e nem às cidades do norte do Estado Pontifício. Tão-só com Martinho V é que Roma, a partir de 1417, recupera a tranquilidade e a ordem necessárias. A cidade assistiu à drástica diminuição da sua população nos decénios de instabilidade, regenerando-se lentamente à medida em que encetava certa ascensão que lhe granjearia prestígio.

17 de outubro de 2016

Saturday Night Fever.


    Como o prometido é devido, fiquei de assinalar um evento que se realizou no passado sábado, um jantar que reuniu alguns bloggers, e não só, num espaço calmo e acolhedor no coração da Lisboa boémia. Éramos nove. Número razoável. Começou-se numa caipirinha, terminando, para mim, num café animado em que não faltou bom humor e saudável convívio. Revi amigos, alguns dos quais com quem não estava há imenso tempo - o convidado surpresa, um bom amigo (não escondo a imensa alegria ao saber da sua presença), e conheci duas pessoas.

    Creio ser justo fazer um pouco de publicidade ao estabelecimento. Fomos bem recebidos, o ambiente era convidativo, e a comida, diga-se, estava excelente. Ao fundo da Rua de São Marçal, encontrarão o Frei Contente, que não conhecia. Merece uma visita, seguramente da minha parte, repetindo.

     Queria felicitar o organizador do jantar pela disponibilidade, eficiência e imaginação. Com boa vontade, tudo se consegue. Foi um dos jantares em que mais me deu prazer participar. E o grupo, pela harmonia.



14 de outubro de 2016

Trump e Hillary.


    Dediquei um artigo, em Maio deste ano, ao sistema constitucional estadunidense, como prefiro denominar por uma questão de correcção histórica, linguística e geográfica, e à candidatura de Donald Trump, que poderão consultar aqui. Supus que seria o primeiro de uma leva de publicações atinentes às eleições presidenciais dos EUA, que desde há muito extravasaram as fronteiras daquele país. Eleger o Chefe de Estado e de Governo da potência hegemónica significa designar um homem ou uma mulher que liderará, sem grandes obstáculos, os destinos do planeta. A ONU demitiu-se do seu papel a partir do momento em que se fez a guerra sem o seu aval.

     Comparar Hillary a Trump será, reconheço, confrontar o programa e o ideário de uma mulher que, embora com todos os defeitos que lhe apontemos, possui a credibilidade necessária inerente às responsabilidades que pretende assumir com um homem surgido do mainstream, uma figura populista, demagoga, que, todavia, está muito bem posicionada para suceder a Obama. E é exactamente aqui que pretendo chegar. Trump é uma piada que, passo a passo, se afirmou, munindo-se da natural apetência dos EUA para comandar, dos discursos galvanizadores que encontraram acolhimento junto dos descontentes com a política do Partido Democrata desde que Obama, em 2008, chegou à Casa Branca. Não é leviano levar Trump a sério, temer as consequências que advirão da sua eleição. O candidato expôs os seus argumentos, alguns deles profundamente desadequados, que ferirão, certamente, a consciência do cidadão médio, em propostas que granjearam os estadunidenses, a ponto de as sondagens o apontarem como presumível futuro Presidente dos Estados Unidos da América. Tecnicamente, há um empate entre ambos. A candidatura de Trump, para os mais distraídos, não paira, qual substância etérea, sobre nós. É uma realidade, uma realidade que poderá materializar-se em votos, no dia do escrutínio popular, e numa vitória.

     Temos dois candidatos e temos medidas que pretendem implementar. Partindo destas premissas, vejamos qual dos dois melhor serve os interesses da nação americana. Não me competirá a mim aferir da pertinência de se eleger um ou outro. Posso, entretanto, colocar-me no lugar de um cidadão americano, homem médio, que quererá a ventura do seu país e pouco intervencionismo externo. Os EUA têm, tendencialmente, um raio de acção no seu espaço geopolítico. Assim se explica a existência das alianças militares, como a OTAN, e do tradicional antagonismo com a Rússia. Independentemente do nome que resultar da eleição, desengane-se quem crê que o papel de ingerência que os EUA desempenham desde o final do século XIX, com o conflito com Espanha, e, mais ostensivamente, desde o final da I Guerra Mundial, conhecerá um refreamento com Trump. O candidato republicano já demonstrou não querer hostilizar a Rússia, sendo certo que os seus comentários agressivos à China não auguram nada de bom. E tenho para mim que, como bom republicano, na senda de Bush pai e filho, estimulará um conflito algures.

     Desconstruir Trump é, aparentemente, simples. Defende o uso da tortura, é favorável à manutenção de Guatánamo, alega que construirá um muro a limitar o acesso dos mexicanos ao território estadunidense, desconsidera imigrantes, mulheres, doentes terminais. O seu discurso, entretanto, não se restringe às medidas mais caseiras, no sentido de incendiárias, e presumo que será aí, no que idealiza quanto à economia e à política de emprego, que seduzirá os seus compatriotas, ao querer taxar as maiores fortunas e ao prometer penalizar todas e quaisquer empresas que decidam abandonar o país. O proteccionismo e o nacionalismo, aliados, constituem o embrião do seu aparente sucesso.

      Hillary, em contrapartida, será mais interventiva na política externa. Internamente, reafirma os direitos das mulheres, que protegerá; na saúde e na economia, apresenta propostas moderadas e realistas, despidas da paixão que Trump imprime a tudo quanto se refere.

       Em suma, Mrs. Clinton é uma candidata razoável, que melhor saberá gerir o mandato. Imagino-a a servir os interesses da indústria de armamento do país, e acredito que Trump fosse mais peremptório na hora de tomar decisões adversas aos lobbies bélicos. O perigo de se eleger Trump reside na imprevisibilidade de alguém que, como referi em Maio, não revela sentido de Estado. A descredibilização do país nos palcos internacionais é, também ela, uma possibilidade com a qual os eleitores terão de contar. Os debates, pelo que pude assistir, não esclareceram os indecisos e nem convenceram os cépticos; perdemo-nos entre tantos ataques ao carisma e à honra, que pouco aproveitam à disputa séria, credível e intelectualmente honesta. Mas falamos de Trump, e com Trump interessa o momento, nem que tal tenha o preço alto de mil impropérios.

11 de outubro de 2016

A Uber e os táxis.


   Assistimos, meio em estado de estupefacção, aos confrontos acesos e emotivos que envolveram taxistas e motoristas das viaturas de transporte de passageiros descaracterizadas. Surpresa pelas proporções que atingiram, porquanto julgo que ninguém acreditava no carácter pacífico da manifestação que estava agendada para ontem, transfigurada num quase bloqueio que, afortunadamente, não terminou com intervenção policial.

    Nesta matéria, adopto a postura que me parece equilibrada. Nunca utilizei os serviços da Uber ou de qualquer empresa similar. Já recorri, como todos, ao sector dos veículos afectos ao transporte de passageiros, os táxis. Sabemos como funcionam todos os sectores que desenvolvem a sua actividade quase em situação de monopólio. Atrasos, desvios propositados no percurso para que o taxímetro assinale um montante mais elevado a pagar no final da viagem, manifesta descortesia e comportamento grosseiro e indelicado por parte de alguns profissionais... Vejo-me, no entanto, obrigado a não generalizar. De igual modo, há taxistas simpáticos, atenciosos e honestos. É bom que não sejamos levados a apoiar a postura crítica, extremista e irracional que tem despontado no discurso dos cidadãos, sobretudo nos que se vêem directamente prejudicados pelas reivindicações dos taxistas.

    A Uber opera à margem da lei. Há legislação aplicável ao sector dos táxis, que regula a sua operacionalidade, os requisitos a preencher e as regras a cumprir (formação, atribuição de licenças, licenciamento dos veículos, etc.). Essas competências cabem, maioritariamente, às autarquias locais. A Uber, que presumo pela sua celeridade e eficácia, impôs-se, concorrendo deslealmente com os taxistas. O sector ressentiu-se, surgindo os transtornos e os distúrbios que se vêm produzindo desde há meses a esta parte. O actual executivo - e bem - pretende regular o serviço com um diploma legal que está em maturação. O processo legislativo é ainda moroso: após aprovação, a devida promulgação do Presidente. A querela arrastar-se-á por uns tempos.

     Favoravelmente aos táxis, faz-se mister aludir aos benefícios de que esta classe goza em virtude de a sua actividade estar devidamente regulada, particularmente no domínio fiscal. Ainda assim, não vejo em como uma praça de táxis e uma faixa BUS, por exemplo, poderão competir com uma aplicação de smartphone, simples, rápida e cómoda, bem como com tarifas que carecem de fixação legal, na medida em que há um vazio legislativo.

     Não vislumbro uma solução pacífica, com os discursos a subirem de tom e com actos hostis e violentos, sendo quase seguro que o conflito veio para ficar. A Uber é uma realidade e, em verdade, a destruição de uma ou de duas viaturas não assustará a multinacional, que decerto manterá a sua posição muito privilegiada, até então, no mercado de transporte de passageiros.

4 de outubro de 2016

A corrida ao secretariado-geral da ONU.


   António Guterres, ex-Primeiro-Ministro de Portugal e ex-Alto-Comissário para os Refugiados, decidiu-se a apresentar uma candidatura ao secretariado-geral das Nações Unidas. A ONU, que conta presentemente com 193 Estados-membros, surgiu da nova ordem internacional emanada com o fim da II Guerra Mundial; o seu Conselho de Segurança, órgão máximo, espelha a hegemonia de cinco Estados sobre os demais 188, totalmente alheada da realidade actual, não faltando vozes que se ergam defendendo uma reforma que inclua uma representação mais abrangente e igualitária.

    A eleição do Secretário-Geral não é democrática. O Conselho de Segurança conta com quinze membros, sendo que cinco são permanentes, sendo eles a Rússia, a China, os Estados Unidos da América, o Reino Unido e a França. Com o veto de um deles, o candidato não consegue obter a unanimidade exigida para ser recomendado ao cargo; um cargo que, refira-se, assenta mais no protagonismo e na influência do seu titular. Tendencialmente, espera-se que um Secretário-Geral seja uma figura idónea, moderada, discreta e que saiba utilizar o protagonismo do cargo em benefício da organização, isto é, do bem comum.

    Guterres granjeou a simpatia internacional e tem-se posicionado como favorito. A bem ver, venceu cinco votações, embora com alguns votos de "desencorajamento". O Conselho de Segurança já se pronunciou numa primeira votação e, ao que tudo indica, Guterres terá alcançado o apoio de doze dos quinze membros, o que aponta para a aprovação de, pelo menos, três dos membros permanentes. Para ver o seu nome aprovado na Assembleia Geral das Nações Unidas, o candidato terá de obter nove votos positivos entre os membros do Conselho de Segurança, sendo que nenhum membro permanente poderá obstar à sua recomendação.

    Gostaria de evitar dar ênfase à polémica em torno da candidata búlgara surgida inesperadamente, e que contará com o apoio implícito de Jean-Claude Juncker, Presidente da Comissão Europeia, e de Angela Merkel, a chanceler alemã, de quem se diz ter tentado persuadir a Rússia a apoiar Georgieva.
   Sabemos, ou pelo menos suspeitamos, como são os meandros destas negociações que visam assegurar a tranquilidade necessária que aproveite às potências. Georgieva é mulher, tem ciente que se espera um Secretário-Geral do antigo leste europeu, mas também tem presente o carácter tardio e inusitado da sua candidatura que, embora não seja ilegal e nem ilegítima, será injusta. A substituição de Irina Bokova foi oportuna; Kristalina Georgieva, sendo Vice-Presidente da Comissão Europeia, reúne o apoio daquele órgão comunitário e, seguramente, de uma ala do Partido Popular Europeu.

     Ser eleito Secretário-Geral das Nações Unidas não implica qualquer favorecimento ao país do qual o candidato escolhido é nacional. O nomeado, ou a nomeada, assegurará que os seus actos visarão acautelar o bem-estar no seio da comunidade internacional. Exige-se, assim, que seja alguém ponderado, sem polémicas que possam melindrar o seu mandato. Entre os candidatos que, verdadeiramente, estão na disputa, Guterres e Georgieva, creio que não será difícil vislumbrar qual preenche os requisitos impreteríveis para um responsável exercício do cargo. A campanha de Guterres tem sido tão prudente e recatada como o próprio. A tradicional mesquinhez político-partidária faz com que, dentro de fronteiras, haja algum desconforto com a possibilidade de um socialista ser o mais alto dignitário das Nações Unidas - e só o nega quem é leviano ou, na melhor das hipóteses, ingénuo e incrédulo.

     O dia de amanhã, 5 de Outubro, em que assinalamos mais um aniversário sobre a República implantada em 1910, poderá ser determinante para António Guterres. Uma decisão que se lhe fosse favorável acarretaria, por inerência, prestígio ao nosso país. A visibilidade de um Secretário-Geral das Nações Unidas não encontra paralelo para lá dos Chefes de Estado e de Governo dos países mais poderosos. O meu optimismo é moderado. Em expectativa, faço votos para que impere o discernimento.

29 de setembro de 2016

Portugaliza.


    Desde que iniciei o contacto, sobretudo através das redes sociais, com determinados espanhóis empenhados em construir pontes, mormente políticas, entre Portugal e Espanha, tive conhecimento de projectos que visam, essencialmente, desconstruir as barreiras políticas e físicas que se interpuseram entre o norte de Portugal, o Minho e Trás-os-Montes, e a Galiza, em rumo contrário àquele que sempre foi o sentimento identitário dos povos limítrofes. Em abono da verdade, portugueses e galegos dividem tradições, culturas e inclusive idiomas; o galego e o português configuram, para muitos linguistas, um único idioma, pertencendo ao mesmo sistema linguístico; pela Galiza, no seguimento da hegemonia castelhana peninsular, o galaico-português foi-se afastando entre as variantes a norte e a sul. Actualmente, assistimos a um idioma profundamente acastelhanizado e descaracterizado, pese embora a existência de correntes reintegracionistas que defendem uma aproximação do galego à variante lusófona.

     Do lado de lá, há um consenso generalizado em apoiar uma candidatura da Galiza à CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa). O PP, que recentemente ganhou as eleições autonómicas na Galiza, na pessoa de Nuñez Feijóo, já demonstrou querer que se estimulem as relações entre a Galiza e a Comunidade. Do ponto de vista jurídico, o seu estatuto teria de ser discutido. O Estatuto de Autonomia da Galiza, no artigo 35.º, número 3, permite que a comunidade autónoma, através do seu governo, solicite às Cortes Gerais espanholas autorização para que celebre convénios com outros Estados com os quais partilhe vínculos culturais e linguísticos. No que diz respeito à CPLP, através do artigo 7.º, número 3, admite-se, enquanto observadores, que regiões dotadas de autonomia - o caso da Galiza - possam gozar desse estatuto, porém diminuído; não seria um membro, não teria sequer direito de voto. Relembramos que a Galiza não é um Estado soberano e, nesse sentido, tem uma capitis diminutio.

     Do ponto de vista histórico, são muitos os laços que partilhamos com a Galiza. Portugal surgiu, como se sabe, de um condado, o Condado Portucalense, do Reino da Galiza, que Afonso VI de Leão outorgou a Henrique de Borgonha, nobre que o ajudou nas guerras da reconquista, pelo casamento deste com a sua filha ilegítima, D. Teresa de Leão. Do enlace nasceria aquele que viria a ser o primeiro monarca a reinar sobre Portugal, Afonso Henriques. Falava-se, à época, conquanto a língua culta, da administração e da liturgia fosse o latim, o galaico-português ou galego medieval, do qual trovadores, alguns monarcas, deixaram testemunho. A separação em galego e em português, como referi acima, foi provocada por razões políticas e não por haver, efectivamente, diferenças entre os povos. Quase mil anos depois e constatamos o quão semelhantes são os falares do Minho e da Galiza, particularmente. Se a inteligibilidade com o castelhano ronda os 90 %, com o galego será sobejamente maior. Alfonso Castelao, intelectual galego, considerado o pai do nacionalismo galego, foi um dos acérrimos defensores desse reintegracionismo: da recuperação da identidade e da língua galegas, que considerava pai da língua portuguesa, indispensável para a sobrevivência da própria Galiza.

      Nos dias que correm, há sectores da sociedade galega que defendem uma integração política com Portugal. Ainda que se me assemelhe impossível por uma enormidade de factores a que a sensibilidade escusa a enumerar, não me é uma ideia estranha ou repulsiva. Apenas se faria justiça a uma ligação umbilical que se perdeu algures pela história. A Galiza terá muito mais em comum com Portugal do que com Navarra ou a Catalunha, designadamente, que são duas das comunidades autónomas de Espanha, evidenciando que o país vizinho, em si, conglomera nações históricas, que tanto receio provocam entre os dirigentes políticos centralistas. Na região norte de Portugal, sei de movimentos que propugnam esse reatamento. Nas localidades, os cidadãos vivem a cercania de um modo distinto, talvez incompreensível para os moradores dos grandes centros urbanos e, seguramente, para os poderes de Lisboa e de Madrid.

      A adesão da Galiza à CPLP representaria um primeiro e primordial passo na história que agora ambos, portugueses e galegos, estamos dispostos a reescrever.

24 de setembro de 2016

Os comandos.


    As últimas semanas têm sido particularmente profícuas em casos aos quais o Direito, nomeadamente o Penal, é chamado a intervir. Bem como o fiz aquando da agressão a um jovem adolescente, e no seguimento de uma conduta que adopto, procurarei ser discreto nas apreciações e nos comentários a um episódio recente que está em processo de investigação.

    Todos, inevitavelmente, fomos alguma vez confrontados com a velha máxima de que "o homem faz-se na tropa". O serviço militar, que actualmente não tem carácter obrigatório em Portugal, assume uma conotação vincadamente misógina. Prepara os homens para as adversidades, testa-lhes os limites. Tratando-se de tropas especiais - de elite - como os comandos, a exigência redobra. É importante que tenhamos presente o seguinte: aqueles jovens são preparados para a guerra, que não temos, felizmente, mas que poderemos vir a ter. E num campo de batalha há mortos, feridos, incontáveis perigos, situações em que o ser humano vê o fim da vida diante dos seus olhos. Compreende-se a dureza dos exercícios e das provas; todavia, não se concebe que morram na instrução, se, quanto muito, justificar-se-iam as suas mortes lutando em defesa da Pátria.

     Fazendo fé no que ouvimos e lemos, e que nos tem chegado através de fontes internas do Exército, de militares, aqueles homens estão sujeitos a condições extremas: água racionada, privações de sono, de alimentação; física e psicologicamente extenuantes. Não sou médico, estando, no entanto, tentado a dizer que é impossível suportar todo esse rigor, acrescendo a ele uma temperatura ao sol intolerável sob esforço físico. Morreram dois rapazes e outros tantos estiveram hospitalizados.

     Sabemos que há um código de honra entre os militares, não sendo, por isso, de estranhar que haja uma tentativa para, de certa forma, minorar o sucedido. Houve uma leva de baixas naquele dia. Os instruendos foram transportados para uma tenda e apenas horas depois foi accionado o INEM, ou seja, é notório que tudo se fez para evitar que aquelas ocorrências chegassem ao conhecimento de uma unidade de cuidados de saúde civil. Presumindo que aqueles homens estão aptos à frequência dos cursos, terá havido negligência médica, um diagnóstico falhado? Terão os exercícios excedido, muito embora tenhamos presente a natureza do esforço e o contexto em que se produziu, o humanamente tolerável? Questões em aberto que um inquérito, que faço votos para que isento e célere, tentará responder.

     Não afasto a hipótese de estarmos perante dois casos que fundamentem a tutela penal, confirmando-se as suspeitas e atestando-se a veracidade das declarações que alguns militares prestaram em anonimato. Pelo que soube, o Ministério Públicou abriu um inquérito para apurar as circunstâncias da morte destes recrutas, a par do que já decorre por parte do Exército e levado a cabo pela Polícia Judiciária Militar. E ficar-me-ia por aqui.

     Os novos cursos de comandos estão suspensos, como sucedeu no passado, e estas mortes tão-pouco são um inédito. Exige-se firmeza, treinos adequados e vigorosos, contudo no respeito pela dignidade humana. Um militar deve, acompanhando a destreza física, manifestar um espírito de solidariedade e de humanidade irrepreensível na relação com superiores e subordinados. Deverá procurar ser um homem e um militar exemplar, evitando ao máximo qualquer abuso de poder que lhe advenha da sua posição hierárquica privilegiada.


18 de setembro de 2016

Saturday Fever.


    Neste sábado, aceitei o convite para uma sessão de cinema. Foi, digamos, o mote para que reuníssemos algumas pessoas em torno de uma mesa de café. Esteve uma tarde muito agradável, amena. O Verão gasta os seus últimos cartuchos.

    No que concerne ao filme em si, em exibição no Cinema São Jorge, surpreendeu-me. Como presumo que o mencionei no blogue, nunca fui um aficionado em cinema. Pontualmente poderei ver um filme, mas faço-o através de uns canais premium que assinámos, e nem sempre. Dirigir-me a uma sala com o intuito de ver uma obra cinematográfica sucedeu pouquíssimas vezes.

    O filme baseia-se na série Absolutely Fabulous. Acredito que não represente uma novidade para a maioria.
    Não poderia recomendar mais, sobretudo para quem gosta de dar umas quantas gargalhadas. Na verdade, dará gargalhadas do primeiro ao último minuto. O enredo é bom para filmes do género. Fazer rir é o propósito, animar a audiência, e conseguiram-no inteiramente. Não estou a par do que a crítica escreveu a respeito, nem sequer dos lucros da bilheteira por esse mundo, no entanto não preciso que julguem em meu lugar: eu gostei. Aliás, devo dizer que o preço não faz jus ao divertimento que se retira. Saí bem disposto, e sabe que Deus que, embora disfarce, não sou uma pessoa da qual se possa dizer que é bem humorada. Tenho os meus momentos.

     Há anos que não publicava uma sugestão ou uma sinopse. No caso, não o farei. Relatar a história seria injusto para quem não assistiu. O bom deste filme é ser-se completamente apanhado entre sucessivas risadas soltas. Gostaria de elogiar a actuação das actrizes principais. O humor - dito pelos próprios actores  - é dificílimo. Pôr os outros a rir envolve uma responsabilidade ímpar. Daí que tenham merecido, ainda que não pudessem recebê-las em pessoa, palmas agradecidas do público. Passamos pela vida tão sisudos, tão envoltos nos nossos dramas pessoais, que necessitamos de retribuir o gesto: "obrigado por nos fazerem rir". Assim interpreto.

     Convencidos? Ah, apenas um pequeno pormenor: rir é contagioso; experimentem rodeados de amigos e verão como é mais divertido.