24 de julho de 2015

Um casal.


   Pelas tardes, quando visito a avó, e também enquanto espero pelo amigo, acomodo-me numa das inúmeras lojas da Padaria Portuguesa. Tomo um café, que deveria cortar de vez, como um bolo, ou apenas bebo um sumo fresco, natural, dizem eles, que não encontro quaisquer grainhas no copo...
 
    Diariamente, cruzo-me com casais, sobretudo idosos, que por lá passam para tomar o seu chá, lanchar, quem sabe mudar um pouco a rotina, saindo de casa, caminhando. Senhoras que se apoiam nos seus maridos, e vice-versa, companheiros de uma vida. Um desses casais prendeu a minha atenção desde há umas semanas. A senhora, com ligeira curvatura nas costas, dificilmente consegue suster-se e ao senhor que a acompanha, que presumo marido, de idade avançada, ambos, e que envolve o braço no seu, que em pior condições se encontra. Os seus passos são lentos e arrastados, tentando manter o equilíbrio. Custa vê-los atravessar a estrada receosos, sob olhares indiferentes de transeuntes que passam ao ritmo frenético e profundamente individualista. Quem repara em dois velhotes?

    A senhora mantém certo vigor, comentando com o senhor - bons ouvidos vou tendo - que os «pastéis de nata deles não prestam para nada» e que «as cadeiras não prestam, já ocuparam os sofás» (duas poltronas castanhas junto ao vidro). Pedem o chá, comem um bolo, dividido ao meio. Diria, porque assim o aparentam, que são pessoas de certa posição, até pela postura e pelos seus trajes, mas bem se sabe que a crise afectou, e como, famílias mais tradicionais.

     Atentou em mim, a senhora, percebendo eu que se referira ao tablet. Achou graça à «engenhoca» que «o neto tem», acabando por confessar que queria um. Daí a começar a esboçar-me um sorriso foi um instante, embora tímido e ligeiramente desconfiado. O senhor, por sua vez, agradeceu-me o gesto quando lhe alcancei a cadeira, que estava afastada, permitindo assim que se pudesse sentar.
      Não tendo serviço de mesa, os empregados têm a noção de que se trata de um casal de idade avançada, de mobilidade reduzida, que com dificuldade conseguiria levar o tabuleiro até à mesa; ajudam-nos, portanto, nessa tarefa.

       Dou por mim a indagar-me em se conseguirei chegar a tão longeva idade. Se terei alguém assim, por perto, fazendo-me companhia, conversando comigo, auxiliando-me nos passeios que venhamos a dar. Porque o envelhecimento é, em si, um capítulo da vida como os demais. De profunda e visível decadência física e mental. Para vivê-lo sem a dignidade que a idade nos merece, melhor será partir no tempo em que tudo faz sentido, sem depender da boa vontade, quantas vezes forçada, de terceiros. Este casal é um exemplo de coragem. À sua maneira, aprenderam a viver nas limitações impostas pelas décadas que carregam, dando o sentido possível às horas dos seus dias. E por que não encontrá-lo num café, repleto de bem intencionados desconhecidos?
 

18 comentários:

  1. Que descrição deliciosa de uma fase da vida que suponho ingrata, por vezes. E digo-o, devido à indiferença com que muitos idosos são tratados por pessoas bem mais novas, muitas vezes, até a própria família... E entristece-me saber que muitos são abandonados, vivem sozinhos e sem as mínimas condições. Contudo, os que descreves, parecem estar bem e felizes! :) É admirável também a longevidade do amor que ainda os une! :)

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    1. Sim. Por vezes vejo-os acompanhados de um filho, também já de meia-idade.

      Gosto tanto de os ver. O senhor tem "má cor". Aparenta estar doente. :(

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  2. Adoro estas realidades que nos mostram como a vida pode ser daqui a uns tempos. E essa é uma das coisas que me assusta... é saber se vou chegar a essa idade, e como e se estarei completamente sozinho ou acompanhado. E se sofrerei até morrer ou não. Acaba por ser uma angústia grande.

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    1. Podemos cuidar do presente e acautelar o futuro desde já, mas frequentemente a vida troca-nos as voltas.

      Oh, hás-de chegar a essa idade acompanhado, e bem! :)

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  3. adorei a descrição. Desde miudo nunca tive a ambição de chegar aos 90 anos. Desde que possa mexer-me e pensar por mim. tudo bem...

    Espero que encontres alguém, e que partilhes um dia essas tuas vivências :)

    Grande abraço amigo

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    1. Eu venho sentindo, como de resto já relatei, que viverei "poucos" anos. Talvez uma premonição.

      Obrigado, amigo Francisco.

      um abraço. :)

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  4. Não deixa de ser nobre depender dos outros na velhice ou dificuldade. A sociedade ocidental é muito doente na forma como encara esta questão.
    Oxalá que sim, que tenhas vida longa e fiel companhia até lá! :)

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    1. Sem dúvida. Mas em países como os E.U.A - bolas, não podia ser tudo mau - os jornalistas mais conceituados têm certa idade. No demais, é bem verdade: chegando a determinada idade, as pessoas deixam de ter valor. É ignominioso. Que seguíssemos o exemplo dos países orientais, nos quais a idade é um posto.

      É normal dependermos de terceiros, somos animais sociais; o pior é o individualismo que trespassa o mundo ocidental, como bem disseste. Os doentes terminais, que anteriormente morriam no conforto do lar, hoje morrem em hospitais, quantas vezes tendo à cabeceira apenas o médico, ou nem isso, e mesmo os que podiam exalar o último suspiro na companhia de familiares.

      Oxalá. :)

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  5. Mark não quero pensar no meu futuro nesses termos, acho que a vida é demasiado agri-doce para poder dar me ao luxo de imaginar que irei ter alguém comigo quando estiver velhinho. E isso deixa-me mesmo triste, uns vivem a vida, outros sabem o que ela é e o que nos pode dar.

    Já não espero nada dela, se pudesse baixava os braços e via a procissão passar mesmo à minha frente, mas ela (a vida) não me deixa.

    Se há dias que brinco ao faz de conta, noutros vivo-os, e são nesses que também vejo os casais que passam por mim, a cumplicidade que têm. Não sei se será "amor", mas seja o que for gostaria de também o ter, dizem que o sol nasce para todos, mas passei anos a gostar do tempo sombrio, cheio de nuvens, grávidas de pingos de chuvas.

    Belo texto o teu.

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    1. Partilho do teu desencanto pela vida.

      Não penso todos os dias na velhice, se bem que às vezes surgem-me estes pensamentos: onde, como estarei...

      Limitamo-nos a tentar sobreviver, sozinhos. Estamos por nossa conta e risco. E ou temos a sorte e a sensatez, se a solidão nos é pesada, de inverter a tendência, apoiando-nos em alguém que também a procura colmatar, ou encaramos de frente a realidade. Quanto a mim, preciso de um suporte qualquer. Sou emocionalmente frágil e instável.

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  6. O melhor é não pensar muito nessas coisas. Amanhã vamos de carro, esbarramos num camião, e tudo acaba.
    Por isso, há que namorar muito e passear. Fazer aquilo que nos dá prazer...

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    1. Sem dúvida, mas repara que essa aparente leveza e descontracção pode conduzir ao ócio e à irresponsabilidade. Se é possível que morra amanhã, o que me levará a pedir um crédito à habitação, a fazer um seguro de saúde, a optar por um PPR?...

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    2. Mark, como tudo na vida, é preciso conta peso e medida. Podia ir de férias para Barcelona, que é um sonho, e tinha dinheiro para isso. Mas optei por ficar em Portugal, e ter a certeza que tenho dinheiro para o seguro do carro, que vence entretanto, assim como para outras despesas extra que sei que me vão cair entretanto. Mas não deixei de ir de férias para amealhar e ficar a ganhar bolor na minha conta bancária... LOL

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    3. Foste responsável e fizeste a escolha que te pareceu mais acertada. Entre a diversão e as obrigações, cumpriste com o teu dever. :)

      Olha que o dinheiro nunca ganha bolor. É bom poupar para assegurar provisão em tempos difíceis. :)

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  7. Confesso que gostaria de "ouvir" a descrição desta mesma cena mas pelos olhos deles (do casal), gosto de pensar que a indiferença talvez seja de ambos os lados... "nós" pela arrogância da juventude e da parte deles, talvez, pela experiência de muito já ter vivido! :)

    Basta ver que conseguiram captar tua boa energia para com eles e souberam retribuir, gosto de ver cenas assim, também adoro sentar em um café e "ver a vida passar"...

    Quanto ao futuro, acredito que nenhum de nós nasceu para ser só, não que isso seja um problema ou possa ser ruim... outra coisa que me interessa bastante na vida é a capacidade nos surpreender, se for como esse casal, tenho certeza que não faltará companhia... nem que seja dos amigos! :)

    Costumo brincar com um amigo, que nos pior cenário, ficaremos os dois a atirar um ao outro os dentes em algum asilo por ai! ;-) kkk

    Abraço grande meu amigo! :)

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    1. Olá, amigo Latinha.

      É, seria interessante confrontá-los com este texto. Claro que não teria coragem. :) Sabes, às vezes vou ao café (em primeiro lugar porque gosto, claro) para os ver. Senti tanta empatia. Um misto de ternura e compaixão.

      Somos animais sociais. De uma forma ou de outra, é sempre bom ter companhia.

      um grande abraço, amigo.

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  8. É um retrato bonito e fiel daquilo que a maior parte das pessoas deseja, mas não alcança: o verdadeiro Amor. ^^

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