31 de janeiro de 2012

De que matéria são feitos os sonhos?


 Em tempos pensei, como disseram os Rádio Macau, em mandar «pintar o céu em tons de azul para ser original». Pensei em rir, quando não queria; em seguir em frente, quando a vontade me impelia para trás; em sonhar, enquanto me fosse permitido.
 Quando penso na origem dos sonhos, e não me refiro à interpretação freudiana, penso que são feitos, sobretudo, de imaginação. São um escape à realidade. São meras projeções do ideal, do que queríamos. Também é bom pensar nos sonhos como algo benéfico. Então, feito, os sonhos são bons. Saberão a mel, como aquele que colocamos no leite quente para substituir o açúcar. Poderão, também, saber a pastilha elástica de morango, mas só enquanto mantêm o sabor. Findo este, deito-a fora. Assim é com os sonhos: quando se tornam inconcretizáveis, são colocados no sótão dos projetos inviáveis.
 O doce dos sonhos é equiparável ao amargo da vida, como se deixássemos o pote de mel aberto, durante muito tempo, exposto aos fenómenos meteorológicos.
 Ia ao sótão da avó, antigamente, uma vez que os sonhos inconcretizados estavam guardados em pequenas arcas imunes ao tempo. Não as abria, deixando-os lá dentro. Limitava-me a contemplá-los de fora, como se não lhes quisesse tocar. Não queria, no fundo.
 O pote de mel encontra-se a meio e não há pó por cima das arcas, deduzo. Não tenho ido lá.
 Da próxima vez, saio com as abelhas e vou recolher o néctar das flores para produzir sonhos. Não tenho as suas enzimas que produzem o mel, por isso, deixo essa tarefa com elas. Vou sobrevoar cada flor, recolhendo o seu pólen, depositando nas colmeias que as abelhas me indiquem. Em troca, só peço um pedaço de sonho. Prometo, não me esquecerei do pote em casa.


30 de janeiro de 2012

Eu quero ver o pôr-do-sol.


 Até hoje, nunca vi um verdadeiro pôr-do-sol. Um pôr-do-sol extasiante, que me marcasse de forma indelével. Ontem, de tarde, quando me desloquei àquele jardim que é só meu, tentei observar o Sol enquanto este desaparecia no horizonte. O frio começava a fazer-se sentir. Nunca tive o hábito de caminhar com o casaco vestido, transportando-o envolto no braço, para desagrado da mãe que quase sempre me dá um raspanete ao ver-me chegar sem qualquer agasalho que me cubra o tronco. Senti a brisa de final de tarde a trespassar-me as costas desprotegidas. Impulsivamente, abracei-me, de forma a aquecer-me o máximo possível.
 Ao longe, na minha direção, um casal e uma menina divertiam-se e brincavam descontraidamente. A menina, pequena, subiu para as cavalitas do pai e ria como se não houvesse amanhã. A mãe, protetora, temia a cada desequilíbrio do pai provocado pela irrequietude da criança. Ao vê-los, lembrei-me daqueles folhetos de planeamento familiar que pretendem passar a mensagem de uma família feliz. Parecia uma fantasia. Nestes momentos, uma máquina fotográfica fará toda a diferença. Se tivessem a noção de como irradiavam felicidade, com certeza teriam querido perpetuar aqueles sorrisos.
 Dois rapazes corriam, fazendo desporto. Um deles reparou em mim. Baixou-se, fez flexões e voltou a olhar para mim. Fixou o olhar, que evitei.
 Não!... Esquecera-me do Sol! Mais uma vez, não pude ver o seu ocaso.
 Sabia que não seria especial, num local paradisíaco, mas seria o meu momento.
 Tive frio. Levantei-me, vesti o casaco e saí.


28 de janeiro de 2012

Diz-me que és quem eu quero que sejas.

 Diferentes, porém iguais.

 Sim, ouvi-o um milhão de vezes. Queremos encontrar o tal perfeito. Perfeito porque o nível de admissibilidade é para nós o patamar mínimo de perfeição. Não, pode não ser perfeito, mas convém que seja assim (longa descrição enfastiante...).
 Procurei o melhor para mim, tão bom quanto possível, de preferência que sobressaísse ao primeiro olhar. Mais ou menos como quando olhamos para o céu, de madrugada, e logo fixamos o olhar na estrela mais luminosa que encontramos no firmamento. Está bem, consigo admitir que não olho imediatamente para a estrela mais brilhante que vislumbro, o Sol, mas as estrelas mais cintilantes conseguem atrair a minha atenção e o Sol apenas o sinto de dia.
 Às vezes, aquela estrela que brilha bem mais afastada da Terra, quiçá a uns bons milhares de anos-luz de distância, consegue ser mais antiga e especial. Também as pessoas que não se manifestam entusiasticamente nem por isso perdem o interesse.
 Um frasco de chupa-chupas em forma de biberão. Alto, largo, cheio de chupa-chupas de todos os sabores e cores. Em criança, via-o bem maior do que efetivamente o era. No seu interior, todos os sabores mais vendidos encontravam-se à superfície. Eram os preferidos dos clientes. Naquele dia, não mais havia morango, kiwi, banana ou laranja. Mexi, remexi e voltei a mexer e encontrei um chupa de limão. Oh, limão, "eu não gosto de sabor a limão". Provei. Era saboroso e nunca mais quis outro sabor.
 O limão perde para o morango, como a praia perde para o campo, e eu nunca consegui entender estas distinções.
 Gostaria que me dissesses que és quem eu quero que sejas, mas, se souberes a limão, aprendi a saber que também gostarei do teu sabor.



26 de janeiro de 2012

O Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.


 O Brasil afirma-se progressivamente como uma das grandes potências mundiais; por seu lado, Portugal demonstra as suas fragilidades, fragilidades essas inerentes à sua condição de país pequeno, pobre, mal organizado e desastrosamente governado desde a queda do seu vasto império colonial. Poderia não ser assim.
 Quando analisamos os movimentos independentistas da América Latina, no século XIX, e em África, já na segunda metade do século XX, raramente temos em atenção o movimento independentista brasileiro que em tudo diferiu dos restantes que se processaram, aqui e ali, em todos os territórios colonizados. Em boa verdade, o Brasil e Portugal ainda hoje poderiam estar unidos, não mais numa relação de metrópole-colónia, evidentemente, mas como um Reino Unido, que efetivamente existiu de 1815 a 1822. Não fosse a precipitação das Cortes portuguesas, hoje poderíamos ter uma vastíssima nação dividida nos dois lados do Atlântico...

 Em 1807, aquando das invasões francesas a Portugal, impostas por Napoleão devido ao facto do monarca português não ter  participado no Bloqueio Continental ao seu velho aliado Reino Unido, D. João (futuro D. João VI, príncipe regente desde 1792 devido à doença mental da sua mãe, D. Maria I)  e a família real fogem ou saem estrategicamente (questão desenvolvida por mim num outro texto visível aqui) para o Brasil. À época, o Brasil era uma colónia de Portugal, subdesenvolvida e de certa forma explorada pela sua metrópole. Estando o rei no Brasil, e uma vez que vivíamos ainda o Absolutismo Régio, ou seja, «onde está o rei, está o poder», não fazia sentido o monarca habitar numa colónia. Logo, para além de logo à chegada ter decretado a abertura dos portos brasileiros às nações amigas (Reino Unido), em 1808, o Brasil foi conhecendo várias manifestações de progressiva autonomia e desenvolvimento, sendo que a mais importante foi a sua elevação à condição de reino unido a Portugal, surgindo o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, em 1815. Estavam criadas as bases para um Reino Unido estável, estando, nesta altura, Portugal e o Brasil em pé de igualdade jurídica, podendo mesmo afirmar-se que Portugal era, tecnicamente, uma colónia do Brasil. Não nos esqueçamos de que onde está o rei, está o poder. Caso, aliás, insólito em todo o mundo.
 Afastada a ameaça francesa - e devido ao descontentamento gerado pelo estado de Portugal, arruinado pelas invasões francesas e pela ausência do monarca - em 1820 dá-se a Revolução Liberal que termina com o Absolutismo Régio e exige o regresso imediato de D. João VI (já rei) e da família real a Portugal (1821). D. João VI, apercebendo-se de que não poderia continuar no Brasil, regressa a Portugal, não sem antes deixar no Brasil D. Pedro como regente, em seu nome.

 Em Portugal, as Cortes Constituintes, depois de dada a Revolução, reuniram-se para elaborar aquele que viria a ser o primeiro texto constitucional português, a Constituição de 1822, em moldes liberais, com a separação entre os poderes legislativo, executivo e judicial, inspirada na Revolução Francesa de 1789. A Constituição foi jurada por D. João VI e previa a União Real com o Brasil. Tudo parecia encaminhar-se nesse propósito. Todavia, as Cortes pretendiam recolonizar o Brasil, destituindo-o da condição de Reino e tornando-o novamente numa colónia de Portugal. Dão ordens imediatas para que D. Pedro regresse a Portugal. D. Pedro, naquele que é entendido como o primeiro passo para a independência do Brasil, diz, a 9 de janeiro de 1822, que ficava no Brasil, no que ficaria para a história como o Dia do Fico. Perante a insistência das Cortes portuguesas em recolonizar o Brasil, exigindo o regresso de D. Pedro, a 7 de setembro de 1822 dá-se a independência formal do Brasil, terminando assim o Reino Unido.
 D. Pedro, agora Pedro I do Brasil, torna-se o Libertador da nação brasileira. Em Portugal, foi visto como um traidor. Também haveria de ser visto como um traidor no Brasil...

 Com a morte de D. João VI, em 1826, D. Pedro I do Brasil é o herdeiro oficial da Coroa portuguesa, uma vez que era o filho mais velho do monarca falecido. Impossibilitado de herdar as duas Coroas, portuguesa e brasileira, D. Pedro I, agora também IV de Portugal, visto que chegou a jurar o trono português, abdica em nome da sua filha, D. Maria II, casando esta com o seu irmão, D. Miguel. Desta forma, pacificaria as tensões já evidentes entre liberais e absolutistas (D. Miguel era absolutista) e asseguraria uma estabilidade para a filha, que tinha na altura sete anos. Contudo, D. Miguel, assumindo a regência devido à menoridade da sobrinha e tendo como base o futuro casamento com esta, consegue ser jurado rei de Portugal, usurpando o trono a D. Maria, e restaura o Absolutismo. D. Pedro I vê-se obrigado, então, a voltar a Portugal de modo a lutar pelos direitos da sua filha. Abdica da Coroa brasileira no seu filho, D. Pedro II do Brasil, e vem para Portugal, onde se inicia a Guerra Civil entre liberais e absolutistas. Esta decisão não lhe seria perdoada no Brasil e é encarada como uma traição ao povo brasileiro. O homem que liberta o Brasil de uma tentativa de recolonização, dando-lhe a independência, abdica agora do trono para lutar pelos direitos da filha na antiga metrópole.

 D. Pedro IV (I do Brasil) não traiu Portugal ou o Brasil. De facto, crescendo no Brasil desde a saída da família real para território brasileiro, D. Pedro amava o Brasil e, por isso, lutou pela sua não-recolonização e subsequente independência. Amou também a Portugal, saindo do Brasil e abdicando da Coroa brasileira para lutar em terras lusas pelo legítimo trono da sua filha.
 Portugal e o Brasil poderiam, hoje, estar unidos num único Reino, não fosse a má vontade das Cortes portuguesas da Revolução de 1820. Depois de elevado a Reino, era mais do que legítima a vontade do povo brasileiro de assim se manter. O Brasil não queria a independência total e incondicional de Portugal; o Brasil viu-se obrigado a optar pela sua independência devido ao orgulho colonizador ferido de Portugal. Quem sabe hoje não seríamos um maravilhoso Reino Unido? Sim, seríamos, não me restam quaisquer dúvidas. Um Reino Unido em moldes bem mais sustentáveis do que a Commonwealth britânica, que não é mais do que uma organização internacional que mantém os laços históricos e de amizade entre o Reino Unido e algumas das suas antigas dependências ultramarinas: seríamos uma União Real efetiva. Portugal e Brasil, em total pé de igualdade. Não é ficção: o Reino Unido existiu de 1815 a 1822 e ainda hoje existiria.
 Têm a magnífica União Europeia. É ótimo, não é?
 Se Portugal é a sombra do que foi, a si próprio se deve a sua triste condição.



25 de janeiro de 2012

Nos dias em que viver se torna mais leve.


 Um dia, disse que mudaria. Tornar-me-ia mais indiferente face às circunstâncias da vida. Tentaria me preocupar menos, deixando que tudo corresse o rumo normal, afinal, estando os dados lançados, nada haverá a fazer. Como é evidente, não respeitei o que tivera jurado a mim mesmo.
 Hoje passei o dia a entrar no site da faculdade. A cada log in, um batimento cardíaco acelerado, a respiração ofegante, um enfraquecer nos joelhos. Para nada: as notas ainda não saíram, aquelas que ainda estou à espera do resultado.
 Não almocei como deveria; brinquei com o arroz e o bife no prato. Separei-os como quem separa o trigo do joio, provavelmente imbuído num espírito de conformação: às vezes, nem tudo corre como queremos e torna-se necessária uma preparação para um eventual insucesso. Bebi o sumo de laranja natural, sempre vertido num copo alto e com uma palhinha. Em criança, expirava o ar para dentro do copo através da palhinha; a mãe ficava possessa e depressa me advertia do errado da situação. Já vos disse o quão fui feliz na infância?
 Se quisesse viver indiferente ao amanhã, melhor fora que dormitasse durante algum tempo. Acordado, sou perturbado pela minha ansiedade. A prima toma uns comprimidos. Não, basta sentir-me vivo, nos dias em que viver se torna mais leve.


 

23 de janeiro de 2012

Inexoráveis momentos em um momento.


 Vejo-me na penumbra de um olhar. Questiono se aquela íris, esverdeada, vem de encontro ao meu sinal.
 Subtil, como quando uma gaivota atravessa um céu de maresia. Evito-me a todo o instante, evito as forças que, irresistivelmente, me prendem a ti. Quando as noites e os dias se confundem, o sentimento é o mesmo.
 Não quis tombar ante o desespero. Pensei em ser forte, pensei que após longas voltas nos ponteiros do relógio, tudo ficaria bem.
 Tacitamente, vi-me só. Como é dura a existência num meio sombrio. Se todas aquelas pessoas soubessem o que senti, teriam vindo ter ao meu encontro. Olhar em redor de pouco adiantaria. Não, não quis o pesar, não quis o olhar dolente que só me traria mais constrangimento. Pensamos - pensei - que me bastava a todo o momento.
 Pensei, afinal, em contar o tempo. Contando-o, segundos, minutos, horas, a leveza da passagem tornar-se-ia real. Esqueci-me, todavia, de que o tempo não se conta. O esquecimento fora evitável porque, quando me apercebi, a hora tinha chegado.


19 de janeiro de 2012

Garden.

 Precisei de um tempo para mim. Não senti que necessitava de fugir - talvez fosse o melhor - mas naquele momento era eu ou os outros. É impossível que não projetemos o que fazemos nos que nos rodeiam e amam. Geralmente, desejamos o melhor para nós não por nós próprios, mas por cada um que nos ama e se sente feliz com as nossas vitórias pessoais. A nossa angústia é sempre preferível que seja suportada por nós.
 Atirei com os livros para o sofá da avó. Não consegui mais. Abri a porta e saí, sem que fosse ao site da faculdade verificar se alguma nota tinha sido lançada.
 Percorri os espaços como se levitasse pelo ar. Entrei num jardim e sentei-me num banco. Os ramos das árvores, densamente preenchidos de folhagem verde no verão, estavam agora despidos, de cor castanha-clara. Os raios do sol aqueciam-me demasiado, sendo que nem uma brisa soava por entre as árvores altas que se erguiam sobre mim e sobre todos aqueles que, fazendo exercício ou acompanhados pela solidão, dividiam aquele lugar comigo.
 Não queria ninguém ao meu lado, nem desabafar os receios que guardo. Levantei-me e dirigi-me a um pequeno bebedouro que observei ao longe. Molhei a franja do cabelo ao beber água, o que me levou a pensar que está na altura de lhe dar um pequeno corte, mal a inércia se disperse.
 Procura-se quem viva realmente a vida, passo a redundância. Ciclistas circulavam em redor do jardim. Amanhã hei de aprender a andar de bicicleta.


17 de janeiro de 2012

Perder-me de vista.

 Sentir uma tontura, como se o chão fugisse debaixo de nós. Não gosto de viver sob pressão. Por vezes, chego a questionar o motivo de tanta procura. Surgimos no mundo e estabelecemos os nossos objetivos. A grande - porventura mais significativa - diferença entre a vida e um jogo de tabuleiro, consiste no facto da vida terminar sempre da mesma forma. Dirão, alguns, que também o jogo de tabuleiro, na última casa. Todavia, no jogo de tabuleiro, alcançar a última casa corresponde à vitória, mas, na vida, a última casa é a morte.
 Num ápice, perdemos os sonhos que tão almejámos e conseguimos. O que é a vida senão a procura incessante da concretização de um ideal? Preencher os vazios existenciais é dar um fundamento à nossa existência. Aproveitando da melhor forma cada momento, damos um sentido ao que parece não o ter.
 Quem sou eu? Quem és tu? Seremos a realidade que vemos diariamente ou escapamos ao material como uma sombra que se destaca do corpo ante a luz? Prisioneiros das nossas vontades, encarcerados pelas próprias limitações.
 Quando dormimos e sonhamos, perdemo-nos de vista. Malgrado estendermos a corda, longe de nós estamos seguros, até nos encontrarmos, por fim.


15 de janeiro de 2012

Rain.

 Os dias de sol deram lugar à chuva.
 Quando saí de casa, com a mãe, dois pingos acordaram-me de vez. Despertaram-me de um sonho, sonhos que nem me são permitidos em época de exames. Lembraram-me, também, de que colocar o capuz do casaco na cabeça ou colocar-me por baixo do guarda-chuva da mãe não seria uma má ideia.
 Gosto da chuva. Da chuva simples, sem o vento que retira o norte ao nosso caminho. Gosto de observá-la pela janela e gosto de senti-la no chão, à medida que chapinho as botas por cada poça que vou encontrando pelo caminho. Uma ou outra vez, molho algum livro que leve nas mãos, por isso, descobri que colocá-lo junto ao corpo, se possível por baixo do casaco, é uma boa solução.
 Já no carro da mãe, em direção à casa da avó, baixei o assento do banco e olhei a estrada. Os vidros molhados parecem prismas ao refletirem as luzes do exterior. Na rádio, uma qualquer música dos anos 90 trouxe-me momentos de déjà vu. Era-me tão habitual memorizar o refrão de cada música, catalogando um momento da minha vida à sua melodia.
 Vi-me no cinzento claro das densas nuvens carregadas de água pronta a cair sobre o solo. Senti o sabor do inverno. Dentro de casa, o som da chuva esperava por mim, lá fora.


14 de janeiro de 2012

No banco do fundo, onde o sol é mais forte.


 Doem-me os braços. Nunca carregar livros, cadernos e sebentas foi tão cansativo. Não fosse a mãe levar-me até à porta da faculdade, teria deixado caí-los pelo metro ou até mesmo pela rua.
 Às vezes, dou por mim a pensar no lugar a que cheguei. Ainda ontem brincava no pátio do colégio com os coleguinhas. No canteiro das flores, que a D. Lena tão bem estimava, colhia pequenos malmequeres que não sabia onde colocar. Os meninos jogavam à bola, as meninas brincavam com bonecas; eu seria mais um desertor da vida. Passaram-se os anos e o aroma a flores espontâneas deu lugar ao aroma a páginas novas de livros. As mesmas mãos que colhiam cada flor, apertando-as e carregando-as até que o calor as secasse, carregam hoje centenas de páginas que, teoricamente, não descrevem a vida. A vida, minha, sua, deles, não pode ser descrita num manual. Afinal, que sabedoria carrego eu? Não terão as flores que colhi bem mais a me dizer?

 Passei os vagos corredores. Neles, nem uma pessoa passou por mim. O frio de ambas as portas abertas das extremidades fazia-se sentir. O chão fora lavado. Estava humedecido, não me levando por pouco a escorregar.
 Era suposto estar alguém no jardim da faculdade. Um homem, de óculos escuros e aspecto duvidoso, distante. No banco do fundo, onde o sol é mais forte, não vi a menina de terça-feira, casaco vermelho, caracóis cor de mel e tez clara; nem tampouco o arrumador que, aqui e a ali, pede uma esmola a cada condutor que para a sua viatura. O rapaz que passou pelo passeio paralelo, na rua, perto de um pouco de arame farpado, também ele não passou de novo. O sol esqueceu-se, encoberto por nuvens teimosas de um dia agoniado.
 O banco do fundo não foi o mesmo. As sensações somos nós que as criamos.


11 de janeiro de 2012

Time can't erase a feeling this strong.


 Em pequeno, sonhava que não existiam barreiras para o amor. Julgava tudo possível, sem que nada pudesse perturbar a nobreza de um sentimento. Evidentemente, isso contemplava todas as formas de amar. Qualquer uma era válida, consentida, admirada, permitida.
 Com o tempo, dei-me conta de que não é assim. Há amares moralmente aceites e outros há que são reprováveis. Algumas dúvidas logo pairaram na minha cabeça e se as Oreo são melhores embebidas no leite, se os cereais ficam mais estaladiços no leite frio, se a sopa sabe melhor com um raminho de hortelã, por que motivo duas pessoas não estarão bem uma para a outra independentemente de todas as condicionantes externas?
 Limitado será acreditar - alguns veementemente - de que um invólucro de carne e osso determinará os sentimentos de cada um. Há mais para além da junção de dois corpos, assim como o sol despontará amanhã de novo.
 E, quando o véu da inocência se vai, e a realidade cai em nós, sentimos o peso da verdade, assim como uma onda que nos derruba, nos envolve e nos devolve, violentamente, contra o areal. Não há lástima, nem absolvição. Uma bebida gaseificada com mil vidrinhos quebrados que se ingere, um espinho de uma rosa, um vento gélido.
 Passamos, continuamente. O sol, bom, esse nascerá indefinidamente (pelo menos enquanto durar o hidrogénio e o hélio que o compõem).

8 de janeiro de 2012

Sentimentos.


 Quando acordo, e a disposição mo permite, coloco uma cassete de desenhos animados e fico a vê-los até sair da cama. Houve um tempo, há alguns anos atrás, em que cheguei a temer que alguma se estragasse. Vistas e revistas, vezes sem conta, permitiam-me sonhar através das paredes de casa, correr ao sabor do vento sem me resfriar, experimentar sensações que de outra forma não poderia. Levaram-me a pensar que as grandes histórias de amor só existem no cinema. Histórias de encantar. Histórias em que a Bela se apaixona pelo Monstro e aprende a amá-lo para além da sua compleição física; tudo é possível para um verdadeiro amor.
 De pijama colorido, deitado de frente com a cabeça apoiada sobre os ombros, a magia era-me permitida, finalmente. E o mundo lá fora parava. A realidade tornara-se bem mais tenebrosa. O leite frio esfriara, as torradas moles arrefeceram no prato, a compota de framboesa não chegara a ser aberta...
 Quando, de repente, raios separam-se das nuvens e caem sobre o solo. Raios de mil uma cores. O leite, no copo, torna-se rosa, azul, amarelo, roxo, refletindo a cor dos raios na substância do seu líquido. A absorção das cores fora total.
 Ontem, à noite, vi outra vez alguns filmes que outrora me fizeram sonhar. Desta feita acompanhado de chocolate quente com pouco açúcar. Nenhum doce é necessário quando o ecrã nos ensina lições dos mundos mais doces que algum dia o Homem criou. Criam-se realidades utópicas, mundos em que príncipes e princesas, bruxas e dragões, ocupam o lugar que na vida é tomado por todos nós.
 A Sininho chamou-me. O Peter Pan espera por mim na Terra do Nunca.




7 de janeiro de 2012

Se a caneta preta fosse azul, desenharia as nuvens.


Não gosto de entrar no auditório quando este já se encontra cheio de alunos. Parece que as atenções se focalizam todas em mim e eu prezo por ser discreto. Para além disso, não sinto o som das botas no chão, o que desde pequeno sempre me provocou uma certa boa disposição. Fico mudo dentro de mim.
Acho que fariam bem se colocassem umas cortinas nas janelas. Os pássaros que pousam no parapeito externo não poderiam olhar para dentro, é certo, mas com certeza a luz do sol no verão e o clarão dos relâmpagos em dias de tempestade não seriam tão incómodos. Engraçado, os pássaros assistem às aulas evitando propinas e mensalidades, adquirem conhecimentos que não são testados. Vida de ave é boa.
Tirei duas canetas, uma azul e outra preta. Disseram-me que poderíamos escrever a preto nos exames. Não é muito do meu agrado. O texto fica demasiadamente denso e pesado, intimida-me e retira-me algum à vontade. Depois, já tratando-se de ti, é sem dúvida bem mais agradável observar os teus desenhos, no enunciado do exame, feitos a azul. Imagino o que seria uma nuvem preta, um mar preto (se bem que com as marés negras é um cenário cada vez mais do quotidiano) e todos os teus rabiscos a negro profundo. Perderia a graça.
Inesquecíveis, também, são as expressões amedrontadas que denoto nos rostos dos que me rodeiam. Precisariam - quem sabe - de um céu azul, não muito bem pintado porque preencher, a cor, o céu com uma esferográfica, não dá um ar quase perfeito, mas cada um fá-lo como pode. Mergulhar no céu e sentir-me um pássaro no meio de um exame é um extraordinário efeito de abstração... Pudessem eles sentir o mesmo que eu.
Se na folha branca, enunciado de mil e uma questões, temos o céu, na janela, do lado de fora, poderíamos ter um pássaro que hoje não apareceu. Entende-se, estava frio e, apesar de os dias serem maiores, continua a anoitecer cedo. Perdi minutos preciosos a olhar para as nuvens da tua folha e dei por mim a desenhá-las, não tão minuciosamente, na minha folha. Coincidência, desenhei-as a negro. A caneta azul falhara.
Essas mesmas nuvens, brancas, de contornos negros irregulares que tanto temia. Afinal, tinha sido eu a rabiscá-las no meu enunciado. Muito pouco digno de um menino quase doutor, sim, também acho (não).
Entreguei o exame e saí. O enunciado, com nuvens desenhadas a caneta preta, ficou por cima da bancada, contudo, a tempestade veio comigo no bolso.


2 de janeiro de 2012

A DJ saved me.


Tempo de celebrar. O barulho da luzes pode ser extasiante. Quando olhamos para o chão e o brilho refletido mostra o rosto opaco, baço e cabisbaixo, julgamos a noite perdida. A alegria, essa, ficou esquecida na banheira, enquanto o vapor embacia os vidros nítidos e o perfume dos sais escapa pela porta fora.
Contudo, a música começa a soar, o compasso de cada perna marca o tom. Copos agitam as bebidas no seu interior. Maquilhagem que dá vida aos traços da face, sapatos que, elegantemente, definem as pernas femininas, homens que tentam a sua sorte. Vivências que se cruzam, noites julgadas adquiridas.
Não queria dançar. Nada tinha a comemorar. Vestir smoking não é cómodo, apesar da ideia não me ser totalmente nefasta. Quis afastar o cinzentismo, talvez fosse a melhor forma de enterrar definitivamente o velho ano. A mesa estava agora vazia. A mãe divertia-se com as amigas, dançando descontraidamente ao som da música. O whisky, sem gelo, parecia estagnado no copo. Às vezes, surgia de repente, bebendo um gole apressadamente.
Peguei no garfo e brinquei com as batatas já frias no prato de carne. Envolvi-as no esparregado e imaginei a sensação de insatisfação da batata. Do que a monotonia se lembra... O pequeno espelho portátil do estojo de maquilhagem da mãe dizia-me que o cabelo estava liso e sedoso. Não hesitei em ajeitar a franja pela milésima vez (tique frequente que denuncia o meu estado de nervosismo latente). Um rapaz observava-me da mesa do lado, olhando disfarçadamente enquanto mexia num telemóvel (?). Pode ser que por carência (mea culpa), mas retribuía-lhe o olhar. Até que nos detivemos a olhar mutuamente. Pareceu-me ver a fúria no seu rosto.

" Mark, tem calma. Ele está muito furioso... "

Não estava. Mas senti a sensação de ser observado. Confesso que gostei e assim evitei continuar a mexer desastrosamente no comer frio do prato. O sumo também acabara. Let's dance.
E foi a música que salvou a minha noite. Quis dançar, talvez insinuar-me. Uma dose de loucura, o ecstasy que não tomo, o álcool que não bebo, a magia que não sentia... Senti-a, longe da mãe e das suas amigas que perdi de vista. O rapaz via-me a dançar e isso não me inibiu. Pelo contrário, inebriou-me.
E vi o chão rodopiar, o cabelo soltar-se, as mãos perderem o sentido do toque.
Voltámos para casa, anunciavam na rádio as quatro da manhã, já o frio que anunciaria a manhã se fazia sentir. De casaco de smoking pelos ombros, olhei para o céu e sorri. Olá, ano novo.